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O princípio e a fotografia misteriosa

Luíz Horácio

-Bom dia, não está me reconhecendo, cara? O que você está fazendo aqui, tão distante, por que mudou de área?
-É que...
-Espere, quero saber o que aconteceu. Vou estacionar. Preste atenção, o sinal ficou verde para os carros.
-Eles não são loucos.

-Por que você veio para este ponto, e a sua mulher?
-Me separei, Luís.
-Pelo visto foi de uma hora para outra, faz mais ou menos duas semanas que nos vimos pela última vez, parecia estar tudo bem.
-Foi. A desgraça se deu anteontem
-O que aconteceu?
-Seguinte; naquele último dia que nos encontramos, ela caiu na rua, tropeçou na guia do Lico, e teve um problema sério no quadril, não conseguiu andar, passou o dia inteiro deitada no barraco. Anteontem cara, anteontem a filha dela foi lá e levou ela pra casa. A Joana não consegue fazer nada, a filha dela conseguiu uma consulta pra hoje de tarde. Vim pra cá porque não consigo ficar sem ela num lugar onde a gente costumava estar sempre juntos.
-Quer dizer que a separação é só enquanto a Joana estiver convalescendo, você me assustou. Tenho umas coisas para vocês, mas como vai levar? Você tem dinheiro para a passagem?
-Quando eu levantar o cartaz tu me fotografas? É o meu trabalho, Luís, pensa que vim daquela lonjura pra passear, estou trabalhando, aqui passa muito mais carro, já fiz dezesseis reais, que horas são? Dez e quinze, comecei antes das oito. Com estes dez que me destes inteirou vinte e seis. Será que tu podes fazer um outro cartaz pra mim? Este me parece meio desmaiado, as pessoas precisam ver de longe pra dar tempo de procurar as moedas, assim quando o sinal fica vermelho o dinheiro já está na mão. O meu cachorro? Lico, é o nome dele, Lico campeão do mundo, nem parece que tu és rubro-
negro. Raul; Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e Lico. O técnico era o nosso Paulo César Carpeggiani. Por isso o nome dele é Lico, magrinho...magrinho. Ficou lá no barraco, quando venho pra cá não trago ele. Amanhã estarei aqui, hoje não vou conseguir levar a ração. Ainda quero passar lá na Dina pra ver a Joana. Pode ser?
Fotografastes aquele cara dormindo, pra quê? Queria ver se fosse naquele tempo que se precisava comprar filme, mandar revelar, se tu ias fotografar tanto assim, a maioria dos moradores de rua estão dormindo a essa hora, apenas o pessoal que trabalha com reciclagem que está na atividade. Esses começam cedo com seus carrinhos, mas esses que passam o dia dormindo.... e aquele outro tem dois cachorros, os bichinhos sem comer, claro, os potes estão vazios. Ninguém nos vê, querido, parece que somos coisas do chão, uma pedra, erva daninha, uma minhoca. Mas aquele cara...os cachorros podem ser atropelados, carros dos dois lados, ele dorme sobre o canteiro central. Risco para todos, mas ele foi por escolha, os cachorros foram levados. Não me conformo. Luís, o princípio é o seguinte: quem está com a gente, pode ser uma pessoa, um cachorro; tem que viver melhor que a gente. Compreendeste? Isso mesmo, pensar no outro. Bicho ou
gente, tanto faz. Tem aí no celular a foto da tua cachorra preta? Tu deves ter muita fotografia. Tem alguma preferida?
-Minha foto preferida não é de minha autoria, é do meu pai.
-Tem aí?
-Está na casa dele, mas já pedi a ele, quero colocar no meu escritório. É a fotografia da avó dele, uma velha beirando os cem anos, lenço na cabeça.
-Mas por que é tão importante?
-Quando ele a fotografou eu era criança, cinco ou seis anos, e lembro de tudo. Manhã ensolarada de inverno, ela estava zangada. Não tardaria a morrer. A foto ficava na parede lá em casa e uma cópia na casa de um tio do meu pai, o tio Caíco, sempre que eu ia lá, a primeira coisa que eu fazia era olhar a fotografia que ficava próxima a uma janela. Tempos depois me dei conta que as fotos das pessoas extraordinárias necessitam ficar próximas das janelas.
-Por quê?
-Porque à noite, madrugada, elas saem por aí, fazer curativos no mundo. Meu pai produziu a fotografia mais importante da minha vida.
-Não entendo, grande coisa a foto de uma velha.
-A fotografia se torna importante quando ela vai além, deixa de ser apenas uma foto, uma expressão artística, e se torna sentimento, mistério.

-Se trata de uma fotografia misteriosa ou inventaste esse mistério? Estou te achando estranho, mas não sinto bafo de cachaça, nem cheiro de maconha...tu tá bem? Luís, tenho que trabalhar. Amanhã, não esquece, a ração do Lico.
-Pode deixar. E os documentos, vocês fizeram?
-Ainda não, mas assim que a Joana melhor tu poderias ir lá com a gente? Eles não nos ouvem, nos tratam como se a gente soubesse tudo. E a gente não sabe nada, Luís, não sabe nada. Eu tinha certeza que podia contar contigo. Cara, vou fazer o seguinte; ainda tenho algumas coisas pra comer lá no barraco, mas estou mal de coberta, vou levar um desses cobertores e amanhã levarei as coisas de comer e a ração. Pode ser?

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