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"Como queria ter lido este livro antes!"

Mathias de Alencar

Quando a gente acaba de ler um livro intenso, que remexe aquelas sobras de ordem que tínhamos pensado poderiam estar permanentes dentro de nós, a gente pensa "como queria ter lido este livro antes!"

Mas não adianta, os livros têm disso: eles chegam à hora que dá, ao tempo em que é preciso. Às vezes, para suprir uma falta de ocupação ou de preocupação. Quase sempre, para nos mostrar o quanto eles fazem falta.

Tive a impressão de que O peso do pássaro morto, da Aline Bei, é mesmo um livro sobre a falta -- que é uma forma de dizer a morte, falar sobre a singela e terrível rigidez de pedra do corpo morto, ou sobre o peso de morto que em vida se faz carne na fria pele da solidão. Assim como, na pele de sua personagem, Aline nos convida a desafiar todo o peso que nos imobiliza.

Tive a impressão de que a falta dá mesmo contorno à nossa vida. Somos filhos da falta, e a vida da personagem de O peso é uma vida de falta: do que ela não foi, do que ela perdeu, do que ela não disse, do que lhe ficou engasgado no fundo do peito, no fundo do ventre, da lápide.
 

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Mas a falta nos move. Desejo é do que nos falta, dizem filósofos antes da psicanálise. A inquietação pelo que não temos quase sempre desenha o espectro dos nossos encontros e desencontros. Nesse movimento, o que deixamos de ser constitui o que, no fim das contas, somos.A falta de amor, de amigos, da família, vai sendo preenchida pelos contornos daquilo que nos sobra. E o que nos sobra, no fim das contas, são marcas de dores. Isso que a vida tem de sobra, mesmo os poucos prazeres que tivemos, se transmuta em memória, se transforma em passado, e se refaz, afinal, em falta. O circuito é sem fim, sem fundo.A Aline Bei, nesse poço sem fundo da poética de seu O peso, vai deixando aos poucos a gente se acostumar com essa dor da falta. O que nos sobra é relermos, o seu livro mas também o peso da nossa vida faltosa, talvez para nos darmos conta de que o melhor que sobra de nós seja tão leve que tenha ficado ali, escondido em meio a tanta dor.Talvez por isso o melhor de nós suba aos céus, de tão leve. Aliviado em no fim não ter mais nada que lhe falte. Ou então, deixado assim em livro, para nos lembrar de nunca deixarmos em falta a pequena coreografia de nossos dias de vida, regida por alguma alegria que a arte torna possível, essa do leve peso de ser e de se pertencer.

Mathias de Alencar é poeta e professor na Unifap e na pós-graduação em Filosofia na UFPA. Recebeu o prêmio literário Sweek Tomorrow,(2017) pelo melhor conto escrito em língua portuguesa. É autor de um romance (Falosofia de Mulher; 2016) e de dois livros de poesia (Poemalimpo; 2016; Ninguém há de doar-se a dois amores ou Julieta; 2023), além de outros dois livros na área de Filosofia.

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