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Quanto vale a arte?

Mathias de Alencar

Não sou de refletir apressadamente, e por isso evito comentar fatos muito recentes em textos de análise. Acredito que, por um lado, nenhum fato é tão simples quanto parece ao ser veiculado em mídias diversas; por outro lado, os fatos geralmente se deixam dizer de modos variados, a partir de perspectivas opostas, o que o torna ainda mais complexo e desafiador. Mas um fato que se repete algumas vezes faz ver alguns elementos que nos permitem produzir uma reflexão menos alienada ou alienante, sobretudo quando se trata de algo do nosso interesse. Eu estava disposto a falar sobre outras coisas, mas nesse caso, dado o repetível de um fato absurdo, não há como ficar calado, porque ele acaba servindo de desculpa para falarmos do que realmente importa.

 

Mais uma vez, o quadro Mona Lisa, do mestre italiano Leonardo Da Vinci, sofreu ataques de grupos ativistas, no

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último fim de semana de janeiro. A sopa de abóbora, que felizmente só atingiu o vidro de proteção preparado pelo Louvre, foi lançada por duas ambientalistas que em seguida mostraram os dizeres contra-ataque alimentar (food counterattack) nas camisas que vestiam. Segundo a reportagem de Oliver Slow, para a BBC News, o ato foi seguido de palavras de ordem do tipo: "O que é mais importante? Arte ou direito à alimentação saudável e sustentável?” Em seu histórico, o Louvre já contabilizou diversos outros atos semelhantes. O vidro de proteção, colocado após um ataque a ácido na década de 1950, foi aperfeiçoado com material mais fino e à prova de bala.

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A causa dos ambientalistas é extremamente válida e emergencial. Protestos estão se espalhando pela França, com fechamentos de vias e estradas, reivindicando políticas de favorecimento aos trabalhadores e produtos do setor. Eu gostaria, no entanto, de retomar a declaração das ativistas, integrantes do grupo Riposte Alimentaire, que assumiu em nota a autoria do manifesto: "O que é mais importante? Arte ou direito à alimentação saudável e sustentável?” A intenção, segundo o grupo, é mostrar que não existe arte em um planeta sem vida. O atual sistema econômico, extremamente nocivo ao meio ambiente, é o mesmo que, no fim das contas, mantém o comércio de obras de arte em valores exorbitantes, obras muitas vezes de valor artístico questionável. A motivação do manifesto, observada em sua indignação, poderia facilmente desencadear em nós revolta semelhante – mas contra a arte?

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Volto, então, à declaração que sintetizou o ato, e à ideia que lhe esteve subjacente. Qu’est ce qu’il y a de plus important? Claramente, a alternativa arte ou alimento aponta um desequilíbrio no juízo de valor, exatamente porque valora aspectos distintos da condição humana. Isso ocorre no momento em que as razões de o ativismo se indignar contra o comércio de arte o levam a considerar a arte mesma como simples mercadoria, seguindo a própria lógica do comércio que ele abomina. Sem se dar conta, o ato de depredar patrimônio artístico, alegando outras mercadorias como mais importantes, nivela a arte por um valor de troca que jamais poderia definir nem a arte nem o artista – nem, em suma, a capacidade humana de criação simbólica, como são também os rituais, os mitos e a própria linguagem. O que é mais importante? A questão, vista desde seus pressupostos, parece denunciar a ação contra a arte como mais desumana do que geralmente seus enunciadores a entendem.

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O juízo parece forte, mas é justificável. Comida é, sem dúvidas, importante para a subsistência. Saco vazio não para em pé, ouvi muitas vezes. Mas comer e beber não nos torna humanos. Tais atos são partes de um movimento de manutenção de si comum a todo ser vivo. O que nos torna humanos, ao contrário, é o que fazemos além da comida. Somos seres que, até onde pudemos concluir, possuímos uma mente simbólica, no sentido da capacidade de criar processos de significação tão complexos que a um ser humano se faz perfeitamente possível recusar um alimento que lhe esteja à frente em função de algum significado que transcende a solicitação de resposta que a fome exige. Do mesmo modo, podemos comer além da conta, motivados por estímulos outros que independem da fome para solicitar alimentos. Definir, portanto, a comida como o mais importante ao humano, e com isso vandalizar o legado artístico, é reduzir a pulsão e o desejo ao instinto; a ação livre à mera reação a estímulos. É reduzir, por fim, o que há em nós de criativo ao mais elementar recurso material. O corpo precisa garantir sua subsistência, mas ela jamais define a dignidade da existência humana.

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A indignação contra um sistema que produz um exército de famintos na proporção direta do desperdício de alimentos é fundamentalmente uma indignação humana – afinal, somos nós que patrocinamos a manutenção de tudo isso que está aí. Ela é humana porque diz respeito exatamente ao sentido que atribuímos a essa lógica, mesmo que, na verdade, se bem observada, não tenha lógica alguma. Reconhecer atos desumanos, que parecem se justificar por uma lógica aparente, requer mais do que um raciocínio frio e calculista. Sem sensibilidade, não há reconhecimento humano possível. O apelo à sensibilidade, feito por meio dos símbolos de nossa mente criadora, depende, portanto, da arte como fenômeno capaz de provocá-lo. Atacar a arte como forma de sensibilizar o público para atos políticos desumanos é chafurdar na mesma lama da qual pretende se libertar. É um tiro no pé – no pior dos casos, é se mostrar tão desumano quanto seu algoz. Como já muitas vezes ouvi dizer, para que salvar o mundo inteiro e perder a própria alma?

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O caso das ativistas em Paris é só mais um dos inúmeros que já presenciamos, de repúdio à arte em favor de algo supostamente mais importante. Isso me lembra o conto Um artista da fome, de F. Kafka. Construído como um símbolo evocativo para a condição do artista na sociedade, a narrativa situa a capacidade de jejuar como um espetáculo a que o artista se submete, dentro de uma jaula, sob a supervisão de todos os que duvidam seja ele capaz de realizar o que promete. Só que o interesse cada vez mais reduzido do público, em testemunhar a veracidade do seu esforço, faz o artista descer, dos palcos lotados, para o ostracismo de ser atração em um circo qualquer, exposto a meio caminho dos estábulos, amargando ser menos atrativo que os cavalos. A metáfora aqui é brilhante: se a arte é o que nos humaniza, a condição social do artista beira o animalesco, e o desprezível, para quem considera mais humano comer em vez de criar. “Era impossível lutar contra essa incompreensão, contra esse mundo insensato!” Os juízos do narrador, ao final, são intransigentes: “tente explicar a alguém a arte do jejum! Não se pode explicá-la para quem não a sente”. Cada artista sabe a verdade que essa frase reverbera.

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A um mundo que parece ter perdido a capacidade de se sensibilizar pelo que há em nós de dignamente humano, resta provocar manifestos que ponham a arte numa jaula, para seu espetáculo de incompreensão. Para o artista, no entanto, é seu destino uma vida entregue ao que há de mais importante. E qual a razão do artista em negar valor ao que apenas enche a barriga? Deixo as palavras do artista jejuador de Kafka, mais uma vez, dizerem melhor do que eu poderia: “porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada”.

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