Academia Amapaense de Letras
O QUARTO DAS RECORDAÇÕES
Quando me separei de Ariadne fui morar provisoriamente na casa de meus pais. O velho quarto da juventude parecia me esperar arrumado do mesmo jeito de antigamente, com os mesmos móveis, o gravador Phillips e as fitas dos ídolos da jovem-guarda no baú que há tempos ganhara de vó Clarisse. No criado-mudo um porta-retratos onde eu ostentava a primeira vitória na natação. Nessa época eu era o orgulho da família, um promissor atleta, fadado a ganhar a medalha olímpica e um estudante mais ou menos relapso, mais ou menos eficiente, mas cheio de ideais imorredouros. A ampliação daquele espaço esmagava todas as lembranças, fazia brotar um cheiro de solidão e ócio e inevitavelmente suscitava os segredos que guardava da remota fase de conflitos indomáveis. Como admirava Cervantes, Júlio Verne... As aventuras dos personagens sempre me excitaram. E ali estavam eles um pouco empoeirados na estante de mogno, sobre a cama de solteiro, junto ao álbum de recordações preenchido nos últimos anos do ginásio pelos colegas que migraram pelo país da vida em busca de falsas esmeraldas. Onde andariam hoje? Quantos continuaram seus estudos? Que fim levaram? Eu perguntava essas coisas como um severo professor que espera sem paciência o resultado de seu trabalho. E me lembrava dos mais amigos, dos rivais, das namoradas e da timidez para conquistá-las; dos desfiles escolares obrigatórios nas paradas cívicas, durante a ditadura militar; das peças teatrais que encenávamos; dos trotes e sacanagens aprontadas contra os inspetores que nos vigiavam constantemente para evitar nossas fugas das aulas; das suspensões por motivos nada fúteis, como explodir bombas de São João no filtro de porcelana da diretoria, tocar uma matilha de cães no cio para dentro da escola, acender fogo no rabo de papel colocado sorrateiramente nas calças do aluno mais rabugento da turma ou cuspir catarro no teto da sala e esperar que caísse lentamente sobre os ombros do professor... Nossos pais eram chamados à escola e depois nos castigavam proibindo que assistíssemos a filmes de faroeste, considerados violentos e responsáveis por nossas ações, àquela época.
O quarto estava intato, mas limpado cuidadosamente por Biloca, a velha e fiel criada que me viu crescer e em muitos episódios foi conivente comigo, ao menos me protegendo, mentindo para eu escapar de uma possível surra de cinturão. Certa vez Biloca me viu tirando um paletó do guarda-roupa de papai. Era pra fazer um Judas, que pendurei com meus amigos, no Sábado de Aleluia, em frente á casa do seu Muñoz, um espanhol ranzinza e avarento que já havia cortado várias de nossas bolas quando jogávamos futebol no meio da rua. Na malhação o Judas estava tão bem caracterizado que toda a vizinhança bateu nele achando que batia no espanhol. Quando a polícia chegou em casa junto com seu Muñoz meu pai me chamou e pediu explicações. Eu neguei tudo, como sempre. Então Biloca entrou na conversa e disse que doara o velho paletó a um mendigo, pois estava puído e rasgado nas axilas. Nem eu nem ela sabíamos que o galego havia encontrado um documento com a foto de meu pai esquecido dentro dele.
Abri o álbum de recordações. A foto 3x4 jovial de Marta Gorda transfigurou-se à minha frente, acenando, me convidando para um mergulho no passado. Virei as folhas sequentes, vi muitos desejos de paz, amor, e otimismo para o futuro. No finalzinho estava o retrato de Nice, a doce desejada Nice, morena de olhos azuis, “um fenômeno genético muito raro”, nos disse o professor de Biologia. Ela era linda e nada sabia de amor. Sua formação religiosa a impedia de pensar em sexo. Tinha um pudor de queimar-lhe a face, mas eu consegui domá-la, e por certo tempo a levei ao meu quarto, envolta em um segredo que só nós e uma Biloca aflita sabíamos. Daí em diante ficamos cada vez mais ousados, chegando a transar no banheiro do colégio, atrás do muro, em pé, e nos masturbando prestes ao final dos filmes no cinema do bairro. O risco de ser flagrado nos excitava. Ela adorava.
Um dia meus pais viajaram para o enterro de vó Clarisse. Deixaram-me tomando conta da casa e de minha irmã. Aproveitei o que pude com Nice, cheguei até a tomar um porre de uísque em plena tarde de segunda-feira. Nice ria e minha irmã nada entendia. No dia seguinte saímos no Aero Willys do velho e fomos transar próximo a um circo recém-instalado na cidade. Aproveitamos a escuridão e trocamos juras inspiradas, até sermos puxados violentamente para fora por uns cinco homens que nunca consegui identificar. Nice gritava me pedindo ajuda, mas eu estava completamente imobilizado. Três deles a possuíram sob minha vista. Ela desfaleceu. Eles me jogaram no chão e tiraram minhas calças. Só lembro da dor terrível e da vontade de vomitar, das risadas e fungadas sádicas nos ouvidos e do som de um tiro vindo do escuro. Um palhaço ouvira os gritos e nos socorreu atirando, porém não pôde evitar que fôssemos roubados. Levaram até o carro.
Após o episódio nunca mais vi a namorada. Ela mudou envergonhada para outro Estado. Meu pai recuperou o carro, mas não me poupou de assumir responsabilidades.
Então segui a trajetória comum dos meninos pequeno-burgueses. Fiz faculdade, arranjei um bom emprego, me apaixonei e casei. Separei quando Ariadne não tinha mais esperança na cura de minha impotência sexual, doença que adquiri praticamente de uma hora para outra, após três anos e meio de um casamento tranquilo e feliz. Não valeram as consultas aos especialistas, os remédios importados, as tentativas de parar de fumar e foi em vão a operação de implante de silicone. Morreu todo o desejo. Ou ele ficou retido no entusiasmo do início de namoro. Ninguém me dava uma explicação plausível para o caso. Nem eu tinha, ou não queria ter e acabei desembolsando muito dinheiro com psicanalistas. Foi então que dei a minha mulher a concessão para ter amantes. Ela não quis, falava em dignidade, que me amava, e por isso era melhor o divórcio.
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Os objetos do quarto se amalgamavam com as recordações. Após cinco anos voltava para ele. Dentro dele eu respirava lembranças e ele me envolvia como uma bolsa ao feto. Sentia-me prestes a nascer de novo, já conhecendo, porém, o ambiente que me esperava. Acendi a luz do abajur sobre a escrivaninha de esteira. Era uma autêntica carteira americana do início do século XX, feita artesanalmente de freijó, com suas papeleiras e escaninhos onde por muito tempo preparara meus trabalhos escolares. Ela brilhava, lustrada com óleo de peroba, contrastando com as formas modernas do abajur de fibra de nylon e luz fluorescente. Dentro dela havia uma gaita-de-boca alemã enferrujada, de onde eu tirei um som confuso e sem a harmonia dos outros tempos. Pudera! Com as quedas que levava nas minhas frustradas tentativas de aprender a tocá-la...
As lembranças de frustrações me entristeciam. Acho que cheguei a chorar, coisa que não fazia há muito tempo. Levantei então da cama e liguei o ventilador. Gostava do seu som barulhento, parecia que avisava a hora de decolar. Muitas vezes eu o ligava só para me imaginar de avião pelo mundo. Foi assim, talvez, que ouvindo o seu barulho e recebendo o vento no rosto percebi a luz forte do abajur ficar cada vez mais tênue e os objetos ao redor ausentes paulatinamente de cromatismo. Pensei que a força da energia estivesse diminuindo, porém o ventilador rodou com maior intensidade espalhando meus cabelos e derrubando meus óculos. Desloquei-me para outro canto, mas o vento do aparelho me perseguiu. O ar me sufocava, estava aparentemente leve e limpo, mas paradoxalmente irrespirável.
Foi inevitável pensar que estava tendo um ataque cardíaco. Coloquei as mãos no pulso e no peito e senti o pulsar acelerado da taquicardia. Gritei. Oh, não! Ninguém me ouviria. Os velhos estavam no cinema, minha irmã na sua casa cuidando dos filhos e Biloca de folga. Então eu vi. Eram os bibelôs de louça inglesa se movimentando como gente na prateleira da parede, ao lado da estante. Eu nunca tivera alucinações. Eu vi. Ninguém acreditaria. Aqueles gnomos pintados na louça eram a loucura de vó Clarisse. Só ela sabia de quando datavam e de como chegaram às suas mãos. Tinham um valor imensurável para a velha amante de antiguidades. Mamãe dizia que fora presente de um grande amor antes de vovô, contava que eu me parecia muito com um homem de terno escuro, cujas fotos foram encontradas em sua bolsa de documentos, após a terem achado morta num quarto de hotel. Só faltavam os bigodes, mas o jeito de posar e o sorriso coincidentemente eram semelhantes.
O quarto me sufocava, o ar excedia a possibilidade de respirá-lo, os anõezinhos dançavam na prateleira e a luz enfraquecia se entregando à escuridão. Foi então que uma luz súbita surgiu não sei de onde, atirando raio de cores nos objetos que ficaram surpreendentemente mais nítidos, como se tivessem saídos das oficinas, das fábricas. Eu já conseguia respirar e me encantava com o turbilhão de cores, uma espécie de redemoinho girando no sentido inverso aos dos ponteiros do relógio. Um silêncio branco. O ventilador pousou. A luz voltou ao normal.
Respirei com alívio e olhei as horas. Meu pulso estava transparente, pensei que talvez fizesse parte das cores, que a essa altura estavam sumindo e me permitiam vê-las espocar sobre a esteira da escrivaninha de freijó, como se fossem bolinhas de sabão explodindo sucessivamente sem deixar vestígios no ar. Os gnomos de louça voltaram a seus lugares. Nem parecia que haviam brincado por longo tempo feito crianças malcomportadas.
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O quarto estava quente, pois era tempo de verão bravo e o ventilador pifara. Sei que já era noite porque abri a veneziana e vi faróis acesos iluminando os muros da rua da frente. O meu quarto me recebera de uma forma esquisita. Nele estavam as recordações de adolescência e uns mistérios à espera de serem desvendados. Pensei que essas coisas nunca me amedrontariam, pois como adulto não deveria temer pequenas bobagens e nem se deixar influenciar por meras possibilidades de pensamento sobre comunicações com coisas do além. Eu não sou médium e nem acredito em manifestações espíritas. Ora, minha querida vó Clarisse me amava muito e eu a ela. Ela não me deixaria na mão, se fosse o caso.
Fiz um rápido apanhado do que acontecera mas não consegui saber por que fiquei tão leve, sentindo-me flutuar pelo quarto, com a sensação de prazer me voltando, um tesão incontrolável e uma vontade puta de estar nos braços de Nice.
Fernando Canto é sociólogo, escritor, poeta e compositor. É membro de diversas associações, dentre elas: Associação dos Escritores do Rio de Janeiro, dos Escritores do Pará e dos Escritores do Amapá; da Academia Maçônica de Letras do Estado do Amapá e atualmente é presidente da Academia Amapaense de Letras.