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Samba e literatura: As escolas de samba que se inspiraram em livros e autores para o Carnaval 2024

A relação entre literatura, livros e samba (e carnaval!) não é novidade, mas em 2024 ela ganhou ainda mais força nas escolas de samba do Rio e de São Paulo. Muitas delas se inspiraram em obras e autores para criar seus enredos e homenagear a cultura brasileira. No Rio, quatro escolas do grupo especial usaram textos ou publicações como base para seus temas – outras recorreram a fontes bibliográficas para embasar suas narrativas. Em São Paulo, a Mocidade Alegre, atual campeã, fará uma viagem pelo Brasil com Mário de

Andrade, o autor de Pauliceia Desvairada (Principis; 1922-2019 3ªed.). No Rio, duas escolas adaptaram obras literárias contemporâneas para o samba. A Portela contará a história de Kehinde, a protagonista de Um defeito de cor (Record; 2006 28ªed.), de Ana Maria Gonçalves. Já a Grande Rio traz a saga de um detetive que investiga um crime em Meu destino é ser onça (Civilização Brasileira; 2023 2ªed.), de Alberto Mussa. Em São Paulo, os desfiles acontecem nos dias 9 e 10 de fevereiro, e no Rio, nos dias 11 e 12 de fevereiro.

Silvio Carneiro

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A onça na avenida: Como a Grande Rio transformou o livro de Alberto Mussa em um enredo de carnaval​

A escola de samba Acadêmicos do Grande Rio está com grandes expectativas para o desfile, que tem como enredo o livro Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa. A escola ficou em quinto lugar no ano passado.

O livro é uma recriação do mito Tupinambá da criação do mundo, em que a onça é o animal, o ser e o espírito que devora e admira tudo. O enredo segue a trajetória da onça desde os tempos antigos até os dias de hoje, em que ela é um símbolo de resistência das terras indígenas e da comunidade LGBTQIA+. A cidade de Duque de Caxias, onde fica a escola, também é uma terra indígena.

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À esquerda, o manto. À direita, iconografia demonstrando o uso
À esquerda, manto Tupinambá em exposição no Museu Nacional.
À direita, iconografia demonstrando o uso do manto.

Os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora trabalhavam no enredo desde 2017, mas só agora encontraram o momento certo para apresentá-lo: o retorno para o Brasil do manto Tupinambá, que foi roubado pelos colonizadores e que se encontrava na Dinamarca desde o ano de 1699. O manto é muito importante para os rituais de antropofagia. É uma peça sagrada que foi devolvida ao Brasil neste ano e que ficará no Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Antes do carnaval, as escolas divulgam uma sinopse do enredo. A sinopse da Grande Rio ressalta a colaboração de Mussa no processo. "Ele [Mussa] nos ensinou muito sobre a importância da onça em vários aspectos, que não estão no livro e que vão além". Os carnavalescos conheceram o autor em 2018, depois de ganharem o Estandarte de Ouro com a Acadêmicos do Cubango. Mas eles só contaram para ele sobre o enredo este ano, por receio de não dar certo.

Um defeito de cor: Como a Portela vai homenagear o livro de Ana Maria Gonçalves

A Portela também levará um livro para o Carnaval: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. O livro conta a história de uma africana velha, cega e moribunda, que sai da África para o Brasil atrás do filho que perdeu há muito tempo. Este é o quinto enredo da Portela baseado em um livro – outros autores homenageados foram Mário de Andrade e José de Alencar.

Os carnavalescos são Antônio Gonzaga e André Rodrigues, que estreiam na Portela este ano. Segundo a sinopse do enredo, o sonho da Portela "se sustenta no principal símbolo que faz ela ser o que é e chegar onde chegou: o afeto. A história do livro, que resgata as origens, serve de inspiração para esse sonho".

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Literatura na passarela: Outras escolas de samba que se basearam em livros para o Carnaval em 2024

A Imperatriz Leopoldinense, que foi campeã no ano passado, se inspirou em uma ficção – O testamento da cigana Esmeralda (domínio público), do poeta Leandro Gomes de Barros – para inventar um novo destino para ela, diferente do que o poeta e cordelista escreveu.

O Salgueiro teve a colaboração de Davi Kopenawa para fazer o seu samba, Hutukara. O livro A queda do céu: palavra de um xamã Yanomami (Companhia das Letras; 2015), de Kopenawa e Bruce Albert, está entre as referências do enredo da escola, junto com outras.

Em 2023, a Porto da Pedra voltou para o grupo especial do carnaval carioca com um enredo baseado no livro A jangada: 800 Léguas pelo Amazonas (L± 1881-2020), do francês Júlio Verne. Este ano, a campeã da Série Ouro repetiu a fórmula e escolheu um livro para o seu tema: Lunário Perpétuo (Lello Irmão; ?-1980), escrito pelo espanhol Jerónimo Cortés, no século XVI – mas citado por Câmara Cascudo como um dos livros mais lidos no nordeste brasileiro por dois séculos. O carnavalesco Mauro Quintaes se baseou no livro, um almanaque de saberes variados.

Já em São Paulo, a Mocidade Alegre também se inspirou em um livro para o Carnaval. O enredo Brasileia Desvairada é baseado nas viagens de Mário de Andrade pelo Brasil e no seu primeiro livro, Pauliceia Desvairada.

"A Mocidade Alegre vai passear pelo Brasil com o poeta Mário de Andrade", diz a sinopse da escola. "O enredo da Morada segue as andanças do escritor pelo Brasil, passando pelo norte, pelo sudeste e pelo nordeste. É um encontro com o povo e a cultura popular que nos fazem brasileiros. Fazer um novo Brasil, olhar para a nossa identidade e, ao mesmo tempo, celebrar quem somos é o que a Mocidade Alegre quer para 2024. Uma escola que tem o nome do povo e a vontade de festejar".

O enredo foi uma criação do carnavalesco Jorge Silveira e do enredista Leonardo Antan.

Por dentro das obras

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Paulicéia Desvairada é uma coletânea de poemas que retrata a cidade de São Paulo no início do século XX, em meio às transformações sociais, culturais e urbanas provocadas pela industrialização e pela imigração. Publicado em 1922, o livro é considerado a primeira obra de vanguarda do modernismo brasileiro, pois rompe com as formas tradicionais da poesia e incorpora elementos das vanguardas europeias, como o futurismo, o expressionismo e o dadaísmo. O autor, Mário de Andrade, expressa sua visão crítica, irônica e perplexa diante da modernidade, ao mesmo tempo em que celebra a diversidade e a originalidade da cultura brasileira. A obra é composta por 22 poemas, divididos em três partes: "A rua", "Onde a rua acaba" e "A rua novamente". O poema mais famoso é "Ode ao burguês", que foi lido pelo autor na Semana de Arte Moderna de 1922, causando escândalo e polêmica. O livro também contém um "Prefácio interessantíssimo", em que o autor explica suas intenções poéticas e desafia o leitor a compreender sua obra.

Um defeito de cor é um romance histórico que narra a trajetória de Kehinde, uma africana que foi escravizada no Brasil e depois retornou à África em busca do filho que havia perdido. A história é contada pela própria protagonista, que aos 107 anos, cega e moribunda, escreve uma carta para o filho, revelando os dramas, as lutas e as paixões que marcaram sua vida. O livro aborda temas como a escravidão, o racismo, a resistência, a religiosidade, a identidade e o amor, em uma narrativa envolvente e emocionante, que mistura ficção e realidade. A autora, Ana Maria Gonçalves, se inspirou na biografia de Luís Gama, um dos maiores abolicionistas do Brasil, que era filho de uma africana livre e um português branco, e que foi vendido pelo pai como escravo quando criança. O livro é considerado uma obra-prima da literatura brasileira contemporânea, e recebeu vários prêmios e elogios da crítica e do público.

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Meu destino é ser onça é um livro que recria a mitologia do povo tupinambá, que habitava o litoral brasileiro no século XVI. O autor, Alberto Mussa, se baseou nos relatos do frade André Thevet, que conviveu com os indígenas na baía de Guanabara, e em outras fontes históricas, para reconstruir o que seria o texto original de uma narrativa sobre a origem do mundo, dos homens e dos animais, segundo a visão tupinambá. O livro explora a cultura, a religião, a língua, a guerra e o canibalismo desse povo, que teve um papel fundamental na formação do Brasil. A obra é uma mistura de ensaio, ficção e poesia, que revela a riqueza e a diversidade da tradição oral indígena.

O testamento da cigana Esmeralda, é um folheto de literatura de cordel escrito pelo poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, considerado o "rei da poesia do sertão" por Carlos Drummond de Andrade. O livro conta a história de um grupo de ciganos que traz para o Brasil o testamento de uma cigana famosa, que revela seus ensinamentos místicos sobre a sorte, os sonhos, as mãos e os astros. O livro foi publicado pela primeira vez em 1914, e é uma das obras mais populares do autor, que escreveu mais de 600 folhetos de cordel.

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A queda do céu: palavra de um xamã Yanomami é um livro que combina autobiografia, manifesto e cosmologia, escrito pelo xamã Davi Kopenawa em parceria com o etnólogo Bruce Albert. O livro conta a história de vida de Kopenawa, desde sua infância até sua atuação como líder e ativista em defesa dos direitos e da cultura de seu povo, os Yanomami, que habitam a floresta amazônica entre o Brasil e a Venezuela. O livro também revela a visão de mundo dos Yanomami, baseada na relação entre os humanos, os espíritos, os animais e a natureza, e na prática do xamanismo, que envolve o uso de alucinógenos e o contato com os xapiri, seres luminosos que habitam o céu. O livro é uma crítica contundente à invasão e à destruição da floresta pelos brancos, chamados de "povo da mercadoria", que trazem doenças, violência e poluição. O livro é considerado uma obra única e original, que mistura gêneros literários e oferece um testemunho raro e valioso sobre a diversidade e a resistência dos povos indígenas.

A jangada: 800 Léguas pelo Amazonas é um livro de aventura e mistério do escritor francês Júlio Verne, publicado em 1881. O livro conta a história de uma família de fazendeiros que decide viajar pelo rio Amazonas, desde o Peru até o Brasil, para levar a filha para se casar em Belém. Para isso, eles constroem uma enorme jangada, que é como uma vila flutuante, com todos os seus bens e escravos. No entanto, a viagem é ameaçada por um segredo do passado do fazendeiro, que é chantageado por um homem sem escrúpulos. O livro é uma obra de ficção, mas também uma descrição detalhada da natureza, da cultura e da história da região amazônica, baseada em fontes documentais e científicas. O livro é considerado um dos melhores de Júlio Verne, que nunca visitou o Brasil, mas que soube retratar com precisão e imaginação o cenário e os personagens da maior floresta do mundo.

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Lunário Perpétuo é um livro que reúne diversos conhecimentos e orientações sobre os fenômenos da natureza, da astrologia, da religião, da medicina, da agricultura e da cultura popular. Escrito pelo astrônomo e naturalista espanhol Jerónimo Cortés, o livro foi publicado pela primeira vez em 1594, e teve inúmeras reedições e traduções ao longo dos séculos. O livro é considerado um dos mais populares e influentes almanaques da história, e foi especialmente apreciado no Brasil, onde serviu de guia e inspiração para muitos leitores. O livro contém tabelas das fases da lua, dos eclipses, das festas religiosas, previsões do tempo, horóscopos, biografias de santos e papas, conselhos de saúde, navegação e agricultura, e outras curiosidades e sabedorias. O livro também foi censurado pela Inquisição, que considerou algumas de suas informações heréticas ou supersticiosas. O livro é uma obra de grande valor histórico, cultural e literário, que revela a diversidade e a riqueza do saber popular.

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