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Arte do texto

FERAS FERIDAS NO CORPO, NA ALMA E NO CORAÇÃO

Em Feras Soltas, Lulih Rojanski desnuda quem não pode se despir e expõe as feridas vivas de três almas angustiadas, isoladas fisicamente pela pandemia da
Covid-19 e animicamente pelas perturbações de um tempo que se nega a passar, em um país mergulhado em mortandade e negacionismo de um governo negligente.

Eu esperava ler um romance, mas acabei me deparando com uma poesia de mais 150 páginas. Feras Soltas (Patuá; 2023), de Lulih Rojanski, é uma pegadinha pra quem pensa que vai abrir o livro e ler uma ficção comum. Capciosamente, Lulih estabelece espaços entre os períodos dos sub-capítulos, que eu entendi ser com a intenção de mostrar que ali havia as estrofes de um poema, e é isso o que ocorre. Ao ler Feras Soltas, experimentei sensações semelhantes para estilos diversos. A prosa de Lulih me remete a Machado e Graciliano e Clarice, sua poesia traz-me Pessoa e Drummond e Cecília, e não é exagero. Concluí o livro com a sede de quem traga a primeira rodada.

Há dois outros livros que li recentemente, estes muito badalados pela repercussão que tomaram, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, e O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, e que me vieram à mente durante a leitura de Feras Soltas. Começando pelo último, eu cheguei a comentar em uma rede social que se trata de um livro bom, mas que está a alguma distância de ser excelente. E olha que a obra recebeu o Prêmio Jabuti de 2021, o que, pelo meu julgamento, perderia o prêmio facilmente para Feras Soltas. Quanto a Torto Arado, este sim, um livro genial, a relação se deu porque tanto a narrativa de Itamar Vieira Junior quanto a de Lulih Rojanski usam o recurso honesto de contar a história em primeira pessoa sob o prisma de múltiplos narradores.

O ambiente aparentemente principal de Feras Soltas é o Brasil de pessoas isoladas por conta da Covid-19. Mas este ambiente é apenas o pano de fundo para trazer à tona o confinamento das almas dos três protagonistas e narradores da história. Esses personagens são apresentados aos poucos ou, antes, revelam-se aos poucos porque, confinados que são em si mesmos, precisam de tempo para se sentirem seguros a ponto de se mostrarem. O contato com o mundo externo é raro e está condicionado ao estritamente necessário. A pandemia, portanto, surge para consolidar o isolamento daquelas almas e suas angústias com o passado, que teima em não passar. Algo precisa ser resolvido para que um novo dia surja, mas as correntes do passado a todo instante os arrastam para trás e os impedem de dar o passo adiante.

Mas não espere um espaço equitativo para cada personagem contar o que lhe cabe. Lulih dá a Manuela o privilégio de abrir o livro e consumir suas primeiras 92 páginas (seria Manuela alter ego da autora?). Já na primeira página, Manuela denuncia a morosidade do tempo, que reluta em passar: “... as horas vão sem correnteza, em estranho destempo”. E Manuela passa a reviver, como em um looping interminável, os abusos que sofria do pai quando criança. É uma personagem, embora fragmentada por dentro e vivendo à base de psicotrópicos, forte de personalidade e atitudes. É ela quem se faz esteio de uma casa que a todo instante promete desabar. Manuela parece estar sempre por um fio, caminhando em um arame cortante e instável, não se permitindo despir de corpo e alma.

Sam é o personagem das incógnitas, dos segredos inconfessáveis, das agonias em cujo inferno é morto infinitas vezes por um fantasma. É aparentemente paciente e acolhedor, mas dentro de si padece da necessidade de gritar, de se rebelar, de sair da moldura de pacato e chutar o balde, o pau da barraca, uma canela. Mas não pode. Sam é aquele que sempre tranquiliza e promete solução para tudo, criando ainda mais problema quando se depara com a impotência anímica e física para dar solução à sua própria existência. Em 46 páginas. É dele uma das falas mais belas do livro: “Penso ver um movimento manso de águas em seus olhos sempre que ela sorri assim. Se ela sustentasse um pouco mais o olhar, talvez eu também visse peixes dançando nesse azul”.

 

A Boni couberam 11 páginas para seus impropérios. Contudo, é injusto dizer que só nessas 11 páginas Boni vive. Ele toma conta da narrativa porque sua esquizofrenia o faz estar em todos os lugares, dizendo o que bem quiser, fazendo o que bem quiser e, ao contrário dos demais, dando vazão à sua ira e combatendo seus demônios. Como um Simão Bacamarte machadiano às avessas, talvez Boni seja, dos três, o único racional, que sabe enfrentar com energia o que o perturba, mas que tem atitudes de solidariedade, que sofre com as perdas, que nutre amizades. É em Boni que o tempo se materializa parado. Sua condição de esquizofrênico mantém amalgamadas em sua alma a crueldade e a leveza da criança que não crescerá jamais, em seu mundo sem vírgulas e pontos: ”Oh Suzana não chores por mim”.

 

Lulih Rojanski debuta no romance sem renunciar à poesia, onipresente em seus contos e crônicas. Sua literatura é de uma maturidade e elegância, que, repito, faz-me, ao lê-la, sem medo de ser exagerado, ter a sensação de enlevo que tenho ao ler Machado ou Graciliano ou Clarice, por exemplo, porque também em Lulih a crítica social se manifesta em meio ao angustiante isolamento humano presente na obra. Para o bem e o prazer de todos que amam a boa literatura, Feras Soltas precisa ganhar os espaços das grandes feiras literárias e receber o merecido reconhecimento. Em tempo: Sam é o apelido de Samuel, Boni é o apelido de Bonifácio, Manuela, contudo, não é a óbvia Manu. Tudo é muito sério em quem não se despe.  Agora vou beber a segunda rodada.

Comentários (2)

Lulih Rojanski
Administrador
02 de jul.

Gratidão, Orivaldo, pela maravilhosa resenha!

Lulih

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Convidado:
02 de jul.
Respondendo a

Obrigado eu por me proporcionar o prazer da leitura desse livro belo.


Ori

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