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Czytelnik

Lulih Rojanski

A palavra czytelnik, embora seja difícil de se pronunciar e de origem misteriosa para quem a lê pela primeira vez, tem uma íntima relação com cada um que se dispôs a ler esta coluna de estreia. O mesmo se poderia dizer de sputnik, que lhe serve de rima. Em russo, sputnik significa “amigo viajante”. Em polonês, czytelnik significa “leitor”. Em minha insondável curiosidade, eu gostaria de perguntar a você: existe uma relação dialógica entre estas duas palavras ou eu, como professora de Língua Portuguesa, estou exagerando ao enxergar marcas linguísticas até onde os satélites navegam?

 

Em minha defesa: quem somos nós – leitores – senão viajantes dos tempos e dos espaços das narrativas que lemos? Somos tão viajantes que muitas vezes permitimos que a realidade escorregue para longe pela fenda que se abre no início de um novo livro. Às vezes temos pressa que a realidade desapareça. Abrimos um novo romance ávidos por um mundo diferente – que nem sempre é melhor que o real, mas é um mundo que não nos cobra nada e onde é possível apenas observar tudo sem culpas.

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Aprendi a palavra czytelnik na infância, com minha avô Felícia, uma polaca de alma tão doce quanto os pães açucarados com que nos fartava e que falava um Português atravessado de palavras sem vogais. Eu tinha nove anos quando ela contou para meu pai – seu filho – que eu era uma czytelnik de sem-vergonhices. Por esta época eu andava lendo os únicos livros que havia em casa, os bolsilivros de meus irmãos mais velhos, entre os quais figuravam as histórias da sedutora espiã Eva Brooklin, que enfrentava organizações terroristas internacionais e tinha seios “roliços e palpitantes”. Acho que minha avó também os lia.

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Os bolsilivros poderiam ser a pior iniciação para um leitor, mas funcionaram para mim como pílulas de incentivo e me tornaram uma leitora faminta. Era sempre com alegria e inveja que descobria estantes de livros na casa dos amigos e tinha que dominar minha timidez congênita para pedir emprestado um volume de cada vez.

 

As bibliotecas vieram mais tarde, pela obrigação da escola, e se revelaram o paraíso inalcançável a uma adolescente que preferia amargar a ausência do livro que o suplício de trocar meia dúzia de palavras com a autoridade do bibliotecário. A despeito das bibliotecas, continuei lendo o que o acaso me jogava nas mãos e que nem sempre era boa coisa. Precisei da literatura ruim para reconhecer a boa.

 

Quando pude escolher a boa, entrei em uma viagem sem retorno, perdi o escrúpulo de abandonar um livro iniciado, me recusei a ler o que fosse de qualidade suspeita, me tornei cruel: abandonei na trigésima página um livro de Mario Vargas Llosa! Nesse percurso, deixei para trás muito autor que os leitores glorificam. Primeiro, com um pouco de culpa, e depois, com a alma leve de quem se desobriga a compromissos com o que não gosta.

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Hoje, prefiro me apresentar como leitora que como escritora, pois acredito que sou uma czytelnik pronta. Tenho olhos bastante afiados para escolher o que vou ler e uma dificuldade confessa para experimentar novos autores. Mas sim, experimento. E fico muito feliz quando gosto, porque ao longo de minha construção como leitora, sempre acreditei que nem só de clássicos franceses e russos pode viver a literatura.

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