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Censura e Preconceito na Literatura Brasileira Uma conversa franca com Airton Souza (1).pn

Não há outono na Amazônia

Quem vive na Amazônia sabe que, em toda essa região, só existem duas estações no ano: A estação seca (que corresponde à primavera e ao verão) e a estação das chuvas (outono e inverno). Nos seis meses de sol a Amazônia inteira pulsa de vida, de cores, cheiros e texturas. Nos meses de chuva  a paisagem, toda, muda e os bichos ficam mais recolhidos, o verde ganha uma tonalidade mais escura, o barro vira lama e os céus são constantemente riscados por raios que cortam o céu plúmbeo.

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Não há outono na Amazônia. Ainda assim, o título Outono de carne estranha (Record; 2023) é capaz de evocar aquilo que parecia ser um estranho mundo paralelo: O garimpo da Serra Pelada - cenário do polêmico romance do paraense Airton Souza, que foi premiado e, ao mesmo tempo, censurado pela mesma instituição, o Serviço Social do Comércio - SESC, através de seu prêmio literário.

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Mas não vou falar aqui mais uma vez deste caso, visto que O Zezeu já trouxe no mês passado uma reportagem completa com entrevista de Airton que, caso você ainda não tenha lido, pode ler neste link: https://www.ozezeu.com/general-8-25

Agora eu quero me ater ao livro - e já vou adiantando que não é tarefa fácil.

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Pois bem, como eu dizia, não há outono na Amazônia. Mas o título do livro evoca uma percepção poética de uma grande tragédia. A obra traz as histórias de três homens bem diferentes que se encontram num espaço geográfico (eu diria mesmo geopolítico) e numa época - um lugar e uma época histórica do Brasil - que servem como pano de fundo.

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A época é a década de 80, quando o Brasil ainda se encontrava sob um regime político ditatorial militar, mas já às vésperas de uma tão sonhada redemocratização (que só viria, de fato, em 1988 com a promulgação da chamada "Constituição Cidadã"). O lugar era o garimpo de Serra Pelada, o maior garimpo a céu aberto do mundo, incrustado no sudeste do estado do Pará. Os três homens eram Zuza, Manel e Zacarias.

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A Serra Pelada dos anos 80 é magistralmente descrita por Airton Souza em todos os seus detalhes: Picaretas, enxadecos, mãos calejadas, pedaços de paus, bateias, pás, a lama, a cava, o melechete, as adeus-mamãe... Tudo é de uma realidade palpável. Realidade que contrasta com os três personagens fictícios: Zuza, um homem gay, extremamente sensível e apaixonado que tinha ido tentar a sorte grande, o "bamburro", como garimpeiro num lugar onde a "Pátria" não aceitava "maricas". Manel, um homem casado e com filhos que também

foi tentar bamburrar no garimpo e acabou se envolvendo com Zuza e criando afeto. E Zacarias, padre designado pela sé episcopal de Marabá para pregar o evangelho a homens que preferiam "mil vezes cheirar dinheiro a sentir os aromas dos bálsamos de deus".

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Zuza, Manel e Zacarias são símbolos da diversidade de gente que correu para Serra Pelada a partir de janeiro de 1980. E Airton Souza, filho de garimpeiro, soube recontar e reconstruir como ninguém aquele universo que passou a fazer parte do imaginário de muitos brasileiros. Zuza representa o amor que pode brotar nos lugares mais incertos, no chão mais enlameado e que é capaz de ganhar vida ainda que tendo de submeter-se e subverter-se diante da falsa moral humana. Manel é o símbolo do homem mais reles e comum; o pobre ambicioso que sonhava ser escafandrista, mas que a vida não deu oportunidade e deixou para trás sonhos e família para tentar enriquecer a todo custo. Ainda assim, esse homem que como muitos homens vivem seus conflitos com a própria masculinidade, não sabe se ama Zuza, a família ou o ouro e, com isso, sucumbe em sua própria impotência diante da vida. Por fim, Zacarias representa, num primeiro momento, a fé institucionalizada quando, no final do ano de 1980, a diocese de Marabá instala uma pequena paróquia na vila já formada em torno do barranco. Noutro momento, Zacarias representa a própria fé dos homens em Deus abalada pela fé na riqueza material até que desmoronam em sua própria ganância, ofuscados pelo brilho do Bezerro de Ouro.

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E além destes três personagens tem um outro que só aparece na narrativa como uma sombra. Isso é proposital, pois ele é a representação do estado em sua pior faceta. No livro, claro, o autor preserva seu nome, sua alcunha e sua imagem (por razões óbvias). Mas todas as pistas nos levam a identificar o "marechal" como sendo este bigodudo boa praça aí na foto em preto e branco (e que também aparece já mais velhinho, numa cadeira de rodas, com outro senhor da mesma categoria...

Trata-se do Sebastião Curió Rodrigues de Moura, mais conhecido como Major Curió, o "Imperador da Amazônia".

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Além de ter sido figura de destaque no funcionamento da "Casa Azul" - um centro clandestino do aparato repressivo localizado em Marabá, responsável por torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres - Curió

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foi nomeado em 1980 como interventor federal da Serra Leste, ou seja, ele não só mandava em Serra Pelada, como em toda a região do município de Marabá, que compreendia o garimpo de Serra Pelada e as vilas do Trinta (atualmente "Curionópolis", em homenagem ao santo), Gurita da Serra e 100 (atualmente, Eldorado do Carajás). O regime por ele implantado na Serra Pelada era uma extensão da própria ditadura militar e uma continuação das táticas de combate da Guerrilha do Araguaia, formando uma tropa de "bate-paus". Os "bate-paus", antigos guias dos militares nas operações contra-guerrilheiras, serviam como força paramilitar de Curió.

 

Tudo isso está magistralmente registrado nas páginas de Outono de carne estranha de uma forma, hora explícita, hora em meio a devaneios poéticos. Lamentavelmente, o livro ficou famoso pelo motivo errado. Ainda assim, Outono de carne estranha, 47º livro de Airton Souza, o coloca definitivamente no panteão dos grandes autores brasileiros desta geração. E o livro de 17 capítulos passa a ser leitura obrigatória para quem quer se aprofundar na história brasileira de um Brasil pouco visto e pouco falado.

Autor: Airton Souza

Editora: Record

Páginas: 176

Ano: 2023

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