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A Ascensão da Literatura Feminina/Feminista no Brasil

Uma Conversa com Tainã Bispo da Editora Claraboia

A palavra é uma ferramenta de resistência, transformação e sonho. Um ato político que molda a realidade. Em 2019, a ex-jornalista da revista Valor Econômico e editora independente Tainã Bispo deu vida à Claraboia, uma editora que se propõe a ser uma janela para o mundo, iluminando as páginas com conteúdos que refletem o nosso tempo.

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A Claraboia, cujo nome é inspirado na arquitetura — uma abertura que permite a entrada de luz — simboliza uma janela aberta para céus de cores diversas e subjetividades múltiplas. É um espaço onde a

imaginação é exercitada através da ficção e da não ficção, construindo pontes e criando novas possibilidades para o presente e o futuro.

 

Com o compromisso de promover vidas mais dignas e potentes para todos, a Claraboia se posiciona como um farol na indústria editorial, guiando leitores através de uma viagem literária diversificada e inclusiva.

 

Nesta matéria, vamos conhecer um pouco mais do trabalho da Tainã e da Claraboia e bater um papo sobre a ascensão da literatura feminina/feminista no Brasil.

Silvio Carneiro

O mercado editorial brasileiro tem passado por uma transformação significativa nos últimos dez anos, tornando-se mais diversificado e inclusivo. Essa mudança é evidente na crescente presença de vozes historicamente marginalizadas nas prateleiras das livrarias.

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"Dez anos atrás, o mercado editorial era muito diferente, muito mais autocentrado, muito mais elitizado", afirma Tainã, que possui mais de 15 anos de experiência no mercado editorial. "Mas nos últimos dez anos, essas pautas que têm atravessado a gente enquanto sociedade também atravessaram o mercado e vice-versa."

 

Essa mudança foi impulsionada em grande parte pela atenção que o mercado editorial tem dado às questões sociais emergentes, refletindo as discussões que estão ocorrendo na academia e na imprensa. Isso resultou em um aumento na representação de grupos historicamente sub-representados na literatura, incluindo mulheres, pessoas não-brancas, negros e indígenas.

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"Não é que essa literatura não existisse antes — ela sempre existiu. Carolina Maria de Jesus sempre esteve aí. Quantas outras não existiram, mas foram silenciadas?! A nossa literatura — a literatura das mulheres — sempre foi apagada. Os diários das mulheres eram queimados. São séculos de uma opressão estrutural, de silenciamento, de uma violência contra essa literatura."

 

Segundo Tainã, hoje, essas vozes estão chegando com força nas livrarias, nas discussões literárias, na academia e nos programas de TV. Existe uma demanda reprimida por essas histórias, uma vontade de ler e se ver refletido na literatura.

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A nossa literatura — a literatura das mulheres — sempre foi apagada. Os diários das mulheres eram queimados. São séculos de uma opressão estrutural, de silenciamento, de uma violência contra essa literatura.

"Sempre existiu demanda por mulheres lerem suas próprias histórias — histórias escritas por mulheres —; por pessoas negras lerem outros escritores negros para se reconhecerem…", destaca Tainã. "Mas também esses títulos não estavam em diversidade, em quantidade nas livrarias e nas bibliotecas, porque o mercado editorial é um mercado que acompanha, infelizmente, a estrutura do Brasil."

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Apesar dos avanços, ainda há desafios a serem superados. O mercado editorial ainda reflete muitas das desigualdades estruturais da sociedade brasileira, sendo dominado por pessoas brancas, de classe mais abastada e homens. No entanto, a tendência de diversificação e inclusão parece estar ganhando força, prometendo um futuro mais equitativo para o mercado editorial brasileiro. E, embora o mercado tenha feito progressos significativos em direção à diversidade e inclusão, ainda há um longo caminho a percorrer, de acordo com Tainã.

 

"Ainda falta muito para a gente caminhar, mas eu acho que o mercado editorial brasileiro tem se movimentado até rapidamente — comparando com outras indústrias, outros mercados", diz ela. "Existe um movimento genuíno das estruturas independentes de, realmente, darem espaço que é absolutamente legítimo também para essas vozes ecoarem, essas vozes que sempre existiram, essas histórias que sempre existiram."

 

Para a editora, essa mudança é impulsionada, em grande parte, pela necessidade das mulheres contarem suas próprias histórias, em vez de serem retratadas e estereotipadas por vozes masculinas.

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"Nós, mulheres, fomos contadas e estereotipadas ao longo desses séculos todos e décadas por vozes de homens. E a gente precisa se contar, a gente se conta de outra forma, o nosso olhar sobre nós mesmas é diferente, é a nossa voz", afirma.

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Na visão de Tainã, a literatura desempenha um papel crucial na expansão do repertório de histórias disponíveis, oferecendo criatividade e possibilidades de outros mundos possíveis. Ela destaca a importância de desafiar as narrativas tradicionais, que muitas vezes colocam as mulheres em papéis restritivos e estereotipados.

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"É muito importante para nós, mulheres, termos esse repertório, que é um repertório que tira a gente do conto de fadas tradicional. É um repertório que não deixa a gente enclausurada nesse lugar tão opressor e tão violento que é esse lugar cor-de-rosa que a Disney coloca a gente", diz a editora. "A literatura vem para friccionar tudo isso e dizer para nós que a gente pode o que a gente quiser. A gente pode ter outras vidas possíveis. A gente não está destinada a essa vida de casar, ter filhos… isso é, também, uma opção. Mas não é a única!"

 

Um outro aspecto importante que mostra que a desigualdade de gênero ainda é uma realidade persistente no mercado editorial brasileiro, segundo Tainã, é que as mulheres — especialmente as mulheres negras — enfrentam obstáculos significativos para terem suas vozes ouvidas e suas histórias contadas.

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"É claro que a gente tem passado por mudanças no mercado editorial e coisas importantes de gênero nos últimos anos. Mas a gente ainda tem uma desigualdade de gênero muito grande. A quantidade de lançamentos de homens é maior... a gente ainda tem uma questão muito importante que é publicar menos.”

 

Ela observa que, embora haja uma percepção de que a disparidade de gênero no mercado editorial tenha diminuído nos últimos dez anos, as mulheres negras ainda enfrentam um acesso muito dificultado ao mercado editorial.

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"Entre as escritoras mulheres que estão no mercado editorial são as escritoras mulheres brancas de classe média, classe média alta que conseguem ir abrindo brechas, muito por conta da raça e classe", afirma. "E aí, é lógico que a gente percebe um movimento também importante de trazer essas mulheres negras escritoras para dentro do mercado e também das mulheres trans. Mas aí a gente percebe que realmente é um desafio maior por uma questão estrutural."

 

Tainã destaca a importância de políticas públicas como a criação de editais e programas como o ProAC, que oferece uma pontuação diferente para projetos de mulheres não-brancas, negras e indígenas.

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"É muito importante a criação de editais. O edital Carolina Maria de Jesus é muito importante. Os editais de um modo geral", enfatiza. "Essas políticas são importantes para que a gente consiga fazer, de fato, o que a gente imagina, que é realmente ter representatividade."

 

Ainda de acordo com a veterana, essa representatividade no mercado editorial brasileiro tem sido um tópico de discussão importante nos últimos anos. No entanto, Tainã argumenta que é hora de ir além da representatividade e focar na presença. Ela destaca a importância de ver essa presença refletida nas listas de finalistas dos principais prêmios literários, como o Jabuti e o Oceanos. Para ela, essas listas devem demonstrar equidade de gênero, raça, classe e também geográfica.

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"O mercado brasileiro é muito concentrado aqui no eixo Rio-São Paulo. É importante também que a gente tenha essas vozes nordestinas, nortistas, do centro, do sul… O Brasil é um país muito continental. A gente precisa entender que são muitos sotaques. Nós somos muitos e a literatura precisa representar isso."

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A Claraboia é um selo de mulheres escritoras. A gente só contrata mulheres na Claraboia. Toda a equipe que passa pela gente é de mulheres. Metade das mulheres que trabalha nos livros é branca, metade precisa ser não-branca. Porque é uma questão política, nossa, que a gente também tem que colocar em prática.

A Claraboia tem uma missão única: dar voz às mulheres.

 

Fundada com a intenção de ser uma plataforma para todos os tipos de vozes, a Claraboia rapidamente encontrou seu nicho na publicação de obras de autoras mulheres.

 

"Quando eu comecei a Claraboia, eu entendi que era algo que eu queria muito", diz Tainã. "O primeiro livro foi o Ninguém Solta a Mão de Ninguém (Claraboia; 2019)que é um manifesto político. Mas logo em seguida eu percebi que eu queria muito estar com as mulheres, eu queria muito contar essas histórias."

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Desde então, a Claraboia tem se dedicado a lançar livros escritos por mulheres, tornando-se uma editora de escritoras mulheres, atravessada pelos feminismos. Com essa abordagem,  ela está desafiando as normas do mercado editorial e dando espaço para as histórias que, muitas vezes, são negligenciadas. Através de seu trabalho, Tainã espera contribuir para um mercado mais diverso e inclusivo.

 

A luta pela igualdade de gênero no mercado editorial brasileiro não é uma batalha solitária. Várias editoras estão se esforçando para publicar mais mulheres, contribuindo para um momento especial no mercado editorial independente.

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"Não sou só eu fazendo isso, tem outras editoras fazendo, também publicando só mulheres", afirma Tainã. "A gente vive um momento muito, muito especial do mercado editorial independente."

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Tainã atribui a diversidade atual do mercado ao trabalho incansável das editoras independentes ao longo dos anos. Segundo ela, essas editoras têm aberto caminho para vozes dissidentes e promovido a diversidade em um mercado dominado por grandes editoras.

 

"Esse mercado editorial que está mais visível para as pessoas, tem aí um trabalho importantíssimo das editoras independentes que foram fazendo essas brechas acontecerem, inclusive bancando essa diversidade, essas vozes dissidentes nos últimos anos", diz ela.

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Mas os desafios para as escritoras mulheres continuam grandes. A fundadora da Claraboia expressou seu desejo de facilitar e apoiar essas mulheres, contando suas histórias e promovendo o feminismo na prática.

 

"A minha vontade era de facilitar e estar junto dessas mulheres e contar essas histórias. Contar as nossas histórias por nós mesmas".

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Tainã também destaca a disparidade de gênero no mercado editorial, onde a maioria dos trabalhadores são mulheres, mas a maioria dos diretores são homens.

 

"Eu sempre achei muito curiosa essa cena de você entrar numa editora onde a maioria das pessoas que trabalham — sei lá, eu chutaria uns 70%, 80% — é mulher. É um mercado absolutamente feminino. Mas os diretores são homens", afirma.

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Ao criar a Claraboia, Tainã Bispo buscou criar um ambiente de trabalho diferente, um que fosse atravessado pelos feminismos e focado em compartilhar, trocar, fazer parcerias e construir parcerias.

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A editora também desafia as normas do mercado ao empregar apenas mulheres e se comprometendo em garantir a representação equitativa de mulheres brancas e não-brancas em seu trabalho.

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"A Claraboia é um selo de mulheres escritoras. A gente só contrata mulheres na Claraboia. Toda a equipe que passa pela gente é de mulheres", diz a fundadora. "Metade das mulheres que trabalha nos livros é branca, metade precisa ser não-branca. Porque é uma questão política, nossa, que a gente também tem que colocar em prática."

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Tainã vê a editora como uma forma de desafiar as narrativas dominantes sobre o que significa ser uma mulher — muitas das quais foram moldadas por homens.

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"É sempre o olhar de um homem dizendo o que é uma mulher. Mesmo na moda, as casas da moda dos grandes estilistas, são sempre homens. São os diretores da Louis Vuitton [por exemplo], que definem o que uma mulher tem que vestir. Essas narrativas vão continuar existindo, mas a gente precisa, a gente tem total direito de contar nossas próprias histórias."

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Ao permitir que as mulheres contem suas próprias histórias, elas podem quebrar o silêncio ; aumentando o repertório e inspirando escritoras.

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"Quando uma mulher escreve, quando uma mulher conta a sua história, o mundo muda", diz a editora. "Porque ela está quebrando um silenciamento e uma opressão. Porque ela está aumentando o repertório. Porque ela está mostrando para uma outra menina que está começando, que ela também vai poder ser escritora."

 

A Claraboia tem uma abordagem única para a seleção de títulos. A editora abre chamadas de originais para livros de ficção uma vez por ano, permitindo que escritoras enviem suas obras para consideração. Para títulos de não ficção, a editora realiza uma curadoria, muitas vezes trabalhando com mulheres que têm uma pauta ou reflexão específica. Em alguns casos, a editora também faz uma prospecção ativa, convidando mulheres para desenvolver uma pauta ou reflexão.

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O catálogo da Claraboia abrange uma ampla gama de questões relacionadas ao ser mulher, incluindo ficção que abrange romance e poesia, e não ficção que é bastante política.

 

"As mulheres têm uma dificuldade imensa de publicar o primeiro livro. Então, estar junto delas nesse primeiro livro é muito importante, que é o início da carreira", diz Tainã. "Todos os escritores são escritores antes de terem os seus próprios livros publicados, mas é um ritual, é importante materializar isso em algum momento."

A Clarabóia tem planos ambiciosos para o futuro. Apesar dos desafios de manter uma editora com essas características no Brasil, Tainã Bispo está determinada a continuar lançando dois a três livros por ano.

 

"Manter a editora viva e lançando aí dois, três livros por ano, pra mim, já é uma grande vitória", diz Tainã. "Esse ano a gente vai publicar três livros e a ideia é essa, é manter ela viva, pensando nessas pautas, muito antenada, com essa sensibilidade das questões, que são as nossas questões de mulheres, mulheres brancas, mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres latino-americanas, pensando os feminismos de uma forma ampla e diversa."

 

Tainã vê a Claraboia como um lugar de resistência política, mas também de alegria e imaginação. Ela acredita que é importante imaginar futuros, especialmente em um momento em que o fascismo está dominando o mundo.

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A Claraboia também se esforça para construir uma rede de parcerias com outras mulheres, reconhecendo que a colaboração é fundamental para o sucesso.

 

"Estar com essas mulheres na Claraboia, as autoras, mas também as mulheres que trabalham comigo, é algo que é também de construção de futuro", afirma.

 

A fundadora da Claraboia acredita que é importante criar espaços seguros e acolhedores para as mulheres, onde elas possam trabalhar com dignidade e proteção. Ela vê a Claraboia como um passo em direção a esse futuro.

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"Ter a editora, para mim, é validar que esse futuro já pode existir nesse presente. Estar com essas mulheres é uma honra. Algumas são parte da história do nosso país, parte da história dos nossos feminismos, de mulheres que estiveram à frente de muitas lutas".

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Ter a editora, para mim, é validar que esse futuro já pode existir nesse presente. Estar com essas mulheres é uma honra. Algumas são parte da história do nosso país, parte da história dos nossos feminismos, de mulheres que estiveram à frente de muitas lutas

Tainã vê todas as autoras da Claraboia como inspirações, cada uma criando literatura à sua maneira e trabalhando arduamente para serem reconhecidas e construírem sua rede de leitores.

 

"Que alegria poder ver essa quantidade enorme de mulheres escrevendo, publicando", diz ela. "O importante é que a gente tem expandido essas formas de abrir brechas e de fazer, de ser escritoras."

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Através do trabalho da Claraboia, Tainã espera continuar expandindo essas brechas, permitindo que mais mulheres se tornem escritoras e tenham suas vozes ouvidas.

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Participantes da 1ª Imersão Palavras de Fogo

Se você não tiver alguém ali para te dar a mão, seja um professor, seja um amigo, uma amiga, principalmente uma amiga literária, talvez você possa desistir. A ideia é escrever, é publicar, é se autoafirmar como escritora

Para Tainã Bispo, Os clubes de escrita e os cursos de escrita criativa têm desempenhado um papel crucial no mercado editorial brasileiro, proporcionando um espaço seguro e acolhedor para as mulheres desenvolverem suas habilidades de escrita e autoconfiança.

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“Esse ambiente das escritas criativas é muito interessante para as mulheres, em especial, ter um lugar de uma autoafirmação, de uma autoconfiança, de uma construção de confiança, de sentir protegida, de amadurecer essa voz”, diz a editora.

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Ela observa que esses espaços são particularmente importantes para as mulheres, cujas vozes foram deslegitimadas e silenciadas por décadas. 

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“Se você não tiver alguém ali para te dar a mão, seja um professor, seja um amigo, uma amiga, principalmente uma amiga literária, talvez você possa desistir. A ideia é escrever, é publicar, é se autoafirmar como escritora.”

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Ela conclui destacando que a busca por um presente e um futuro mais digno, ensinada pelos feminismos, não é apenas para as mulheres, mas para todos, incluindo pessoas trans, crianças, animais e a natureza.


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“Os feminismos ensinam que essa busca é por um presente que respeite todas as formas de vida, sejam elas inclusive dos animais, da natureza. Ainda estamos longe de alcançar a igualdade de gênero no mercado editorial. Na verdade, parece que estamos vivendo quase o oposto disso. No entanto, a fricção dessas estruturas é muito importante”.

 

Tainã acredita que a literatura desempenha um papel fundamental na criação dessa fricção, ajudando a moldar a subjetividade e a imaginação nas mulheres. Segundo ela, é através dessa fricção que podemos começar a fazer mudanças reais.

 

“A literatura com a gente é um dos papéis mais fundamentais para fazer com que essa fricção aconteça na nossa subjetividade, na nossa imaginação”, diz ela. “É também da onde a gente vai poder fazer essa engrenagem, fazer com que as coisas realmente mudem”, finaliza.

 

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