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Livro

Tudo começou com um livro... tudo começou com meu pai...tudo está nos livros.

 

Eu quero escrever um livro... um livro para ser lido. O paradoxo é o seguinte: parece que hoje em dia o livro para merecer leitores tem que ser um livro idiota... não eu não quis dizer um livro de idiota pois tais livros são frutos de mentes muito esclarecidas...

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Eu tenho livros... sempre os tive. Hoje é impossível ter um livro em minhas mãos sem que me sinta acariciando meu pai ou conversar com meu pai sem falar em livros.

 

Essa é uma das razões para querer escrever um livro. Ele só passou a ser pai depois do meu nascimento,  só foi chamado de pai depois que aprendi a balbuciar algumas palavras... ufa! ele precisou de mim para  alguma coisa... Eu preciso escrever um livro para meu pai.

 

Agora tenho montanhas de livros e um vazio imenso que não se preenche com gente. Gente é muito sem graça, nada original, agora TODOS  estão usando tatuagens para ficarem diferentes... também TODOS estão usando brinco na língua... tudo para ficarem diferentes.

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Eu não quero gente... eu preciso de livros. Mas e o sexo? Como sempre  a primeira coisa a ser questionada. Basta que passe alguém por breves instantes que terei sexo, que frequente minha cama, meu tapete sem muita assiduidade já é suficiente. Tenho tantos livros... tantos livros lidos e tantos que não conseguirei ler nem que só dedique a isso o resto dos meus dias.

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O tempo, esse tirano, é muito rápido. Só me dou conta da sua velocidade quando vou reaproveitar os papéis de presente do natal. Agora vou escrever o meu livro, teve uma época em que fui crítico, hoje detesto essa gente, no fundo no fundo o crítico é um fofoqueiro. E os caras vivem disso, de falar mal de uns livros e inventar livros bons a seu bel prazer. Sou da teoria que um livro não merece críticas, pode até merecer um ensaio mas não simples críticas. Dos livros nascem filmes, nascem peças teatrais e dependendo pode até nascer gente. Estão rindo? Pois é agora tem livro pra tudo e aí repousa o perigo, pois quando um livro é importante TUDO está nesse livro. Ler é afiar os sentidos. Todos.

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Eu tinha uma ideia para escrever meu livro, no primeiro parágrafo eu faria uma confissão, confessava uma culpa que até hoje nem meu pai sabe, mas refleti um pouco, puro acaso, e percebi que seja lá o que for, se  começa com uma confissão não pode prestar. O problema é que tudo muda, o corpo muda, mas a mente também muda e eu não consigo amar a todos que desejo amar. Por mais que tenha lido e ainda venha a ler sei que não chegarei a nenhuma conclusão relevante, no entanto aumentarei meu rosário de dúvidas e... para completar... eu sempre acabo esquecendo deles... os amigos... as amigas... os parentes... as paixões... os amores. Está estranhando tamanha variedade, mas é assim mesmo: é impossível amar um parente como se ama uma amiga e amar um amante como se é obrigado a amar um irmão. Cheguei a pensar que amava todo o mundo, que o mundo era lindo feito o pôr do sol admirado do Arpoador, que o ser humano era pura verdade, não eu não disse bondade, grande bobagem, hoje para poder me amar creio ter desaprendido a amar os outros. Para mim o grande enigma é “pra que tanta gente se todos são tão iguais ?” Não quero conhecer mais ninguém, basta. Quero ler, preciso ler...ler...ler...até...

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MULHER B- Até enlouquecer? Ou melhor... até ficar ainda mais louca? Os livros, minha querida, são como as pessoas. Basta ler alguns para saber como são os outros. Se você ama tanto os livros por que não lê livros de matemática meu amor? Você está duplamente equivocada quer ver? Se as pessoas são todas iguais por que, em vez de ficar aqui enclausurada, você não sai a procura da pessoa diferente que você sabe que existe. Alguém tão diferente quanto você? E tem mais, por que você não escreve seu livro? Vá... faça algo diferente ou...

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MULHER A- Ou...

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MULHER B- Ou se lamente meu amor. Seja mais uma vida em linha reta, rotineira, previsível, monótona. Meu amor o grande lance da vida é inventar esquinas. Crie esquinas, quebre a monotonia da paisagem.

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MULHER A – Criar uma esquina?

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MULHER B – Quem falou “uma esquina?” Várias, infindáveis esquinas sua boba, favoreça as surpresas, saia um pouco do seu mundo de papel. Diz uma coisa: “quanto tempo faz que você não dá uma boa trepada?” Repare bem, eu disse boa.

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MULHER A  - Sei lá...acho que faz...não aquilo foi outra coisa...foi...foi...mas isso não importa. Vem cá quero te mostrar os livros que chegaram hoje de manhã, comprei pela internet.

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MULHER B- Quem disse que estou interessada em livros, a única coisa que muda nos livros é a capa o resto é a mesma lenga lenga. Lições disso e daquilo, uma infinidade de teorias e teses  que acabam obrigando o leitor a se sentir um ignorante. Dia desses entrei numa livraria de shopping, enorme, dessas que as pessoas pegam os livros e vão folhear no café entre uma paquera e outra. Pois no lugar de cada uma delas eu via lagartos, lagartos velhos e solitários escondidos  atrás dos livros protegidos pela solidão do anônimo companheiro de infortúnio. Quando você quiser definir o ser humano minha querida diga isso: “O ser humano é só o disfarce de um bicho qualquer que exagera”. Como você, por exemplo, tem cabimento uma pessoa acumular tanto livro...tanta solidão...

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MULHER A – Você está exagerando

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MULHER B – Esqueceu que sou humana? Pra seu governo, meu amor, eu leio, gosto de livros e sei degustá-los entre uma trepada e um filme, entre uma praia e... uma trepada, entre uma peça e... uma trepada. Entendeu? Sou uma alma sadia que não quer saber de abstrações e necessita da carne... dos prazeres da carne. Agora... olhe pra você... pálida feito um verme, culta e fria como um museu, não tem nem com quem conversar e...

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MULHER A – E quem disse que eu quero conversar?

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MULHER B – Todo mundo que gosta de ler gosta de conversar.

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MULHER A – Mas eu não gosto.

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MULHER B – É o que vamos ver. Você gosta, mas tem medo, é diferente do livro que traz uma palavra nova e então você recorre a outro livro em busca do significado. Sua ignorância, de economia interna, ficou amassada entre as páginas de um livro feito uma borboleta mas se a borboleta inventasse de pousar logo em você durante uma conversa, o que você faria? É isso, meu amor, que te mantém afastada das pessoas, medo de ser contestada ou de dizer não sei como qualquer ser humano tem o direito de dizer. Você tem que conversar nem que seja com  seus iguais, os outros vermes pálidos. Vamos começar como tudo começa, primeiro com a conversa e... se não for exigir demais daqui uns cinco anos quem sabe você já esteja dando umas trepadinhas. Prepare-se, logo mais eu passo aqui, vou te apresentar gente... gente que não lê absolutamente nada... uma escoriazinha...

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MULHER A – Mas eu não vou.

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MULHER B – Quer apostar?

 

MULHER A – Não sei o que que eu vou ganhar saindo com você e seus amigos bobocas.

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MULHER B – Viver não significa ganhar ou perder, vermezinho intelectual, viver é criar... ousar... brincar... Quer saber de uma coisa? Você está com medo de sair de perto do papai, não é?

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MULHER A – Papai?

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MULHER B – É ... o papai de papel, meu amor Freud não virá, não adianta ficar esperando, dê uma folga a esse seu monte de pais de papel, eles não te aguentam já faz um longo tempo e se você quer escrever um livro é bom que conheça gente... tem cada animal por aí meu amor... você não faz ideia...

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MULHER A – Mas e o seu namorado?

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MULHER B -Namorado... namorado? Aquele infeliz passou um mês na Europa, sabe o que ele me trouxe? Uma me-da–lhi–nha. Mandei pra puta que pariu. Vou te apresentar gente meu amor, gente que limpa o prato com  pão, o que teve contato mais íntimo com literatura leu os resumos das obras exigidas para o vestibular, gente bronzeada, gente que nem sabe o que é lipoaspiração, silicone, mas todos fizeram faculdade, prepare-se... eu volto. Beijinho.

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MULHER A – Volta... ela vai voltar... acho bom ligar para o meu pai:

 

“Alô pai tudo bem?

 

PAI-VOZ OFF – Tudo bem minha filha, já recebeu os seus livros?

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MULHER A - Os livros chegaram sim... aqueles que comprei pela internet...

 

PAI – Sabe que os meus ainda não chegaram?

 

MULHER A - Estranho...

 

PAI – Já está escrevendo o seu livro?

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MULHER A - Vou começar hoje pai... vou começar hoje. Pai me diz uma coisa, eu tenho que fazer algo que eu não esteja a fim?

 

PAI - Como assim?

 

MULHER A - Como assim é o cacete pai...., desculpe pai é que uma amiga me convidou para sair e eu não estou com vontade.

 

PAI – Minha filha, quando eu fiz você eu também não estava com vontade.

 

MULHER A - O que você quer dizer com isso, que história é essa de não estava com vontade?

 

PAI – Você lembra como era a sua mãe, ela sempre gostou mais de ler do que eu, com vinte e cinco anos já se recusava a sair de casa, aquela palidez, só tinha olhos pra sua biblioteca, não sei se você lembra... Como você pode ver às vezes os maiores prazeres brotam de momentos vividos contra a nossa vontade.

 

MULHER A- Entendi pai. Beijo

 

PAI – Não se preocupe com a hora de voltar. Esqueça o relógio em casa. Beijo (desliga).

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MULHER A- Já cansei de tentar ficar longe dos livros, mas... não consigo

 

(toca o telefone MULHER B OFF)

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MULHER B – Meu amor esqueci de dizer pra você não acreditar naquela bobagem que afirma que tudo que vale a pena vira livro e o livro vira filme. Isso é uma enorme besteira. Dia desses vi na TV os caras enviando uma cápsula para o espaço com alguns livros, páginas de jornais e coisas do gênero, seria uma representação da raça humana e, caso exista vida fora da terra, os coitados tomariam conhecimento da nossa inesgotável capacidade intelectual. Pura tolice meu amor. Se na verdade eles estivessem preocupados em enviar amostras da capacidade humana bastava colocar dentro da cápsula uma barata, só uma. O homem inventou a cura para quase tudo, mas não consegue acabar com as baratas, símbolo imbatível da miséria, quer material, quer intelectual. Livro meu amor, livro é puro despiste. E tem mais, sei que você está pensando em escrever um livro, pois faça e se mate. É garantia de sucesso. E aí já tomou banho? Daqui a pouco a gente passa pra te pegar.

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MULHER A – Mas eu não sei.

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MULHER B – Até mais e dá um jeitinho nesse cabelo pelo amor da santa estética. Beijinhooooo (desliga).

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MULHER A – Merda... merda... sempre tem uma coisa que a gente não deseja a nos perseguir. Eu não quero sair, tenho que terminar meu artigo para o jornal, tenho minha peça que preciso começar a escrever, tantos livros... tantos livros ao meu redor... e agora que mais preciso deles eles me parecem tão distantes. Sair, sair, sair, sair pra quê? Sair com alguém pra mim sempre foi como sair para procurar relâmpagos em noite de lua cheia. Volto pra casa e atraso os relógios na tentativa de apagar o tempo perdido. Meu pai sempre disse que a loucura se forma em casa e também por isso vivo só, pra não contaminar ninguém. Eu preciso da solidão, é o pré-requisito pra minha liberdade. Mas eles estão a caminho, daqui a pouco estarei sendo abraçada e beijada por gente estranha dizendo: “bom te ver”. Bom te ver por quê? Não sabem do que sou capaz. Quanto cinismo! Bom te ver é o cacete. Já sei vou pedir ao porteiro para dizer que saí e vou começar a ler um dos livros novos. Eu li que o amor necessita de crueldade, então que eles se sintam amados e... se ela não me procurar mais? Será ótimo... será? Mas quem me dirá que estou pálida, quem me lembrará dos benefícios do sexo, quem ainda tentará me arrastar para o convívio humano, quem... quem?

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TOCA O TELEFONE-MULHER B-OFF

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MULHER B – Meu amor eu...

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MULHER A – Já sei seus amigos desistiram do programa, não é? Ninguém mais vai sair, é isso...claro.

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MULHER B – Calma ... nossa...que stress. Continua valendo o combinado, acontece que me veio a mente um pensamento antigo, coisa da infância e logo lembrei de você, é o seguinte: você é uma especialista? (longo silêncio) É ou não é? Responde porra.

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MULHER A – A... Acho que sim, quer dizer sou.

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MULHER B – Pois eu tenho uma tia que é especialista em biologia marinha, mais precisamente nos bichos que habitam as mais tenebrosas profundezas, a mulher é um monumento à cultura e à solidão. E olha que não é feia não mas vive isolada e como não consegue conversar com os bichos vai conversar com quem, quem mais estaria interessado no trabalho dela? E vai acontecer o mesmo com você meu amor, o que adianta você saber tudo de literatura se não torna isso acessível, se você não se faz acessível? Meu amor anote isso, é profundo: “se conformar como crítico, do que quer que seja, é perpetuar a frustração.” Anotou? Sabe qual é o único tipo de especialização que admiro, me atrai e ainda me faz rir? O bêbado. E você nem bebe, não é? Era isso, já está pronta, deu um jeitinho nesse cabelo horripilante? Por favor não coloca roupa preta e... não esqueça de tomar banho. Beijinho (desliga).

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Assim que MULHER B desliga MULHER A volta a ligar

 

MULHER A – É o seguinte: Não vou sair e não tem mais conversa.

 

MULHER B-OFF- Puta que pariu por essa eu não esperava... não assim... tão dura.

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MULHER A – Mas tem uma condição: saio se for só com você, esqueça seus amigos. Você quer que eu me modifique, pois então tenha paciência, presencie você as minhas mudanças, depois chegará a vez dos outros. Vamos devagar.

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MULHER B – Está aceita a condição. Mas o horário está mantido e você tem pouco tempo.

 

MULHER A – Tá certo. Beijinho (desliga)

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O tempo... sempre o tempo. Cada vez mais sinto vontade de pisotear o tempo, não consigo definir o tempo e tudo o que não defino me aterroriza. Eu só quero saber se a morte é a vitória ou a derrota do tempo. Só isso. Preciso ligar para o meu pai. Ele sempre disse que formulo problemas simples, beirando o simplório, mas que exigem soluções sofisticadas. Não, não vou ligar agora, vou ler um pouco. (Escolhe um livro na estante, senta, ao abri-lo escuta a voz de MULHER B: “já está pronta, deu um jeitinho nesse cabelo horripilante? Por favor não coloca roupa preta e... não esqueça de tomar banho.” Devolve o livro à estante).

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Não vou mexer em nada, estou me sentindo bem assim. No máximo um batom.

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