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Banhada em sangue

Lulih Rojanski

Eu fui uma leitora indignada com a postura de Carlos, o protagonista de Menino de Engenho (José Lins do Rêgo), que a despeito de haver perdido a mãe na infância e crescer sem amor nas mãos do avô, de saber que a mãe foi assassinada pelo pai, de estar inteirado de que ao pai homicida e suicida ainda coube a compaixão, jamais questionou o feminicídio. Fechei o livro com o silêncio de Carlos naturalizando socialmente a violência contra a mulher em seu tempo. 

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Do mesmo modo, fui uma leitora inconformada – ainda sou - com a violência simbólica sofrida por Capitu, silenciada por Bentinho (Dom Casmurro, Machado de Assis). Capitu foi magistralmente criada pelo único escritor brasileiro a constar na lista dos maiores

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escritores da história. Quem seria Capitu hoje se não tivesse sido criada como uma mulher dissimulada, sedutora e sob a suspeita de traição?  Capitu é Capitu porque está envolta em uma aura angelical e demoníaca. Ao leitor, sim, ficou a dúvida. A Bentinho, não. Este a julgou e a condenou, sem provas, ao exílio do convívio social, à vergonha perpétua de mulher adúltera. E a sofisticada violência a que foi submetida nem mesmo é percebida pela maioria dos leitores, pois não está representada pelo sangue, mas pela amargura, a perseguição, o pessimismo no trato diário. 

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Se não fosse extremamente chato para o leitor desta coluna, eu poderia enumerar, em lista, obras da literatura brasileira que não têm o menor escrúpulo de estender o corpo de uma mulher sobre uma poça de sangue e deixar que o patriarca desonrado siga impunemente o seu caminho – sustentado na barbárie – sem um questionamento que nos faça ter paz de espírito para seguir o nosso caminho; obras que apresentam a mulher como um ser de classe inferior, submissa e objetificada, sem uma palavra que contribua para a desconstrução das práticas opressoras. Perdoem-me os fãs de Jorge Amado, mas não consigo mais deglutir corpos mulatos sensuais e sem voz. 

 

Como leitora, festejo a evolução da literatura para um patamar em que todas as formas de violência contra a mulher passam a ser questionadas a partir do repúdio à dominação masculina. Não me parece que tenham existido, em tempo algum, bandeiras levantadas na obra de Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles, cujo projeto estético é baseado na liberdade feminina. 

 

Não foi necessário fincar bandeiras. Se tivesse sido, porém, ainda seria louvável pelo que a literatura de autoria feminina trouxe para o novo século. A partir das meninas Clarice, Rachel e Lygia, desenhou-se um novo universo, onde é possível perceber a figura feminina movendo-se com autonomia, a despeito da família patriarcal. E doravante, diferentes autoras passaram a explorar as minúcias das práticas abusivas vividas pelas personagens femininas, ou seja, violência física, emocional e sexual. E a leitora, que se reconhece nas personagens femininas, consome a a literatura não apenas pela fruição, mas pelo poder que ela tem de desvendar outros mundos, de apresentar possibilidades de saída paras as desordens particulares, de ser um braço estendido para suas dores.  A literatura de autoria feminina atual, feminista ou não, é capaz de subverter as representações convencionais da violência contra a mulher. 

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Dizem que todos nós somos facilmente seduzidos pela literatura em que um corpo de mulher banhado em sangue circula pelas páginas. Mas sabemos que a boa literatura sempre saberá apresentar este corpo de modo que a leitora não se sinta violentada também.

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