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Marcia Tiburi: uma voz filosófica, feminista e amorosa que aniquila o patriarcado

Lulih Rojanski

Se eu não a conhecesse por Marcia, certamente a chamaria por Angelita, pois do outro lado da mulher arrojada, cujas lutas acompanhamos pela mídia, ela tem no trato particular uma serenidade e uma doçura (quase angelical) muito bem traduzidas por seu segundo nome.

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Quem lhe deu o conjunto de nomes sabia muito bem a mulher que havia nascido: a Marcia, filósofa, professora universitária, política, feminista, guerreira obstinada contra o patriarcado e o fascismo; a Angelita, artista plástica, escritora, poeta das entrelinhas.

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Estabelecer um diálogo com Marcia Tiburi é muito mais o prazer de ouvi-la que o desejo de lhe dizer algo, é deparar-se com a voz amorosa, treinada na ética, na estética, na filosofia, levantando-se contra os haters do percurso, contra o fascismo ameaçando vigência e o patriarcado da vida inteira.

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Foi neste diálogo à distância que Marcia e eu encontramos nossa conexão, e ela falou de seu novo livro, Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve (Nós; 2023), um livro que mulheres leem com o deleite de ver a violência invertida, como pouco acontece na literatura brasileira, e que provavelmente apenas os homens inteligentes aceitarão.

Esse livro não é uma mera vingança contra os violentos, mas um resgate das vítimas.

O Zezeu: Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve é um livro escrito com o objetivo de se conectar com leitoras que vivem a sua própria história brutal?

Marcia Tiburi: Eu escrevi esse livro em um período muito difícil da minha vida. Posso dizer que ele nasceu em 2019 e ficou pronto apenas em 2023. Eu estava vivendo fora do Brasil por motivos políticos, em um exílio que durou quase cinco anos e foi muito difícil para mim. Ao mesmo tempo, foi um período de muita criação. De fato, a arte e a literatura podem se constituir em processos de cura quando temos a sorte de ter esse recurso emocional e as condições espaço-temporais para isso. Ao dizer isso, tenho em mente que Simone de Beauvoir, filósofa, que era também romancista, tratava o romance como uma forma filosófica, contudo, ainda mais potente, pois essa forma oferecia uma experiência sensível mais completa. Ao mesmo tempo, o fato de termos criado o Levante Feminista contra o Feminicídio na virada de 2020 para 2021 foi um fator que estimulou a minha escrita. Eu não queria apenas apresentar o sofrimento das mulheres para elas mesmas, mas fortalecê-las, dar a elas uma chance de resgate. Esse livro não é uma mera vingança contra os violentos, mas um resgate das vítimas. 

OZ: O livro contém bastante violência e talvez seja necessário a leitora ou o leitor estar bem para digeri-la. Seria um choque necessário? O que você busca com esse impacto?

MT: Quando você vai contar uma história, ela deve ser contada a partir das suas necessidades internas. Leitoras e leitores têm o direito à verdade do texto. Agora, é um fato que a violência na literatura sempre foi produzida por homens e a grande parte dessa violência foi uma representação que envolveu mulheres na condição de vítimas. Eu inverti esse jogo conscientemente. Nesse romance a violência masculina gera violência e, como na realidade, as mulheres são as vítimas da violência masculina, mas podem também reagir. Eu quis, sim, causar esse curto-circuito no nosso sistema mental que suporta a violência. A violência é monopólio dos homens na cultura patriarcal. Usei o romance para refletir sobre a violência respeitando a complexidade do tema, enfim propondo elementos para fazer pensar.

OZ: É um romance tão feminista quanto suas obras não ficcionais. Dos seus sete romances, este se diferencia pelo feminismo no enredo?

MT: Ao longo desses anos publicando ensaios filosóficos e literatura eu fui percebendo a diferença entre as formas da escrita e de como elas implicam endereçamentos. Para quem escrevemos é uma questão que se coloca em todo texto. Os ensaios filosóficos enfatizam o argumento, o raciocínio, o teor racional dos textos e, entrando no espaço da comunicação, eles falam de um modo direto com quem está habituado com um determinado campo, seja filosófico, sociológico, etc. Trata-se de um diálogo gerado em jogos lógicos que implicam os níveis de compreensão racional das pessoas, seus conhecimentos formais e sua inteligência trabalhada para o fim da compreensão do campo. Contudo, um romance vai além, ele pode tocar muito mais gente. Nesse caso, eu escrevi esse romance para as mulheres, mas creio que homens também podem e até devem lê-lo. Evidentemente, no caso desse livro, o feminismo é bem explícito, diferente dos meus romances anteriores.

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OZ: De 2021 a 2023 registraram-se no Estado do Amapá 59 feminicídios. É um número enorme para um Estado de pequenas proporções demográficas e um número que simboliza a banalização do assassinato de mulheres. O que parece é que no Amapá e por todos os lugares mulheres são mortas com muita facilidade. Sua literatura tenciona dizer às mulheres em geral que permaneçam em alerta?

MT: O feminicídio vem se tornando uma pandemia. Vivemos em estado de alerta e de horror. O patriarcado se tornou um terrorismo. A ameaça de morte pesa sobre todas. É realmente apavorante. Com esse livro eu acredito que podemos forjar uma comunidade de reflexão e de sensibilização em torno dessa triste realidade. Todo texto escrito tem o potencial de criar subjetividades capazes de perceber a realidade e suas contradições. Nisso mora o poder da literatura, algo que não apenas eu, mas muitas escritoras vêm percebendo hoje.

Todo texto escrito tem o potencial de criar subjetividades capazes de perceber a realidade e suas contradições. Nisso mora o poder da literatura

OZ: Qual é o lugar do feminismo na atual literatura brasileira?

MT: Eu acredito que, mesmo que nem todos os livros da literatura contemporânea escrita por mulheres sejam assumidamente feministas, a reflexão sobre a condição feminina está presente na imensa maioria dos livros, pelo menos dos que pude ler. De Adriana Armony a Sheila Smaniotto, de Andréa Del Fuego a Morgana Kreutzmann, há um lugar das mulheres que foi aberto pelas próprias mulheres para falar de mulheres. Infelizmente, a vida real das mulheres é plena de violências simbólicas e físicas promovidas por homens, logo é também inevitável que essa literatura trabalhe com esse fato.

OZ: Como a literatura pode ajudar a entender um país como o Brasil, onde somos tão livres, mas em permanente domínio do patriarcado?

MT: A liberdade é uma ilusão burguesa promovida pelo capitalismo. O patriarcado que é a versão de gênero do capitalismo também produz essa ilusão. Somente a luta feminista tem gerado uma liberdade real, sobretudo associada à luta ecologista, antirracista, anticapacitista e quando unida à luta pelos direitos humanos e LGBTQIA+. Nesse sentido, ao apresentar de

A leitura de obras literárias tem perdido espaço para as redes sociais

modo elaborado as contradições sociais, a literatura nos obriga a questionar os acontecimentos.  Contudo, a leitura de obras literárias tem perdido espaço para as redes sociais, o que é preocupante, pois há um regime autoritário sobre a atenção humana e precisamos nos preocupar com isso.

OZ: Você acredita que a literatura feminista tem espaço no mundo digital?

MT: Acredito que a literatura tem chegado e se colocado em todos os espaços, porém é sempre uma luta contra a tendência geral antiliterária e antipoética.

OZ: A literatura brasileira é historicamente machista. A partir dos anos 2000 temos feito avanços, com a publicação de  dezenas de escritoras que produzem também literatura científica sobre desigualdades de gênero e outros temas pertinentes. Onde queremos chegar?

MT: Certamente, vamos chegar a um campo literário mais justo, necessariamente menos machista e racista. Quem sabe até a uma sociedade mais justa.

OZ: Como você lida com o fato de que é uma referência no feminismo brasileiro e literário?

MT: Fico feliz em saber. Jamais me coloquei essa questão. Uma das coisas mais bonitas do feminismo é que somos referências umas para as outras. Nos inspiramos mutuamente, sem hierarquias e cultos da personalidade. E sabemos valorizar os trabalhos umas das outras.

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Minha literatura foi afetada profundamente por essa questão [fascismo] sobre a qual pesquisei ao longo da vida

OZ: Você viveu por mais de quatro anos em exílio na França, durante um período reconhecidamente fascista no Brasil. Como você vê a ascensão do fascismo tanto no Brasil quanto na Europa e como isso se reflete na literatura?

MT: Eu escrevi pelo menos quatro livros sobre o tema do fascismo publicados entre 2015 e2020. Vou citá-los para você: Como conversar com um fascista (Record; 2015), Ridículo Político (Record; 2017), Delírio do Poder (Record; 2019), Como Derrotar o Turbotecnomachonazifascismo (Record; 2020). Minha literatura foi afetada profundamente por essa questão sobre a qual pesquisei ao longo da vida. Na mesma época em que publicava os ensaios, eu publiquei, mais precisamente em 2016 e 2018, dois romances bastante políticos. Em meu romance Uma Fuga Perfeita é sem Volta, publicado em 2016 pela Record, o nazifascismo está presente na narrativa de Klaus, meu protagonista intersexual que mora em Berlim, mas cuja família mora em Santa Catarina. Foi um mergulho na frieza que caracteriza o fascismo e que, quem vem do sul do Brasil, conhece bem. Aliás, o frio é um elemento importante na minha literatura, pelo menos desde Era meu esse rosto (Record) publicado em 2012 e indicado ao Jabuti e ao Oceanos em 2013. Além desses livros, em Sob os pés, meu corpo inteiro (Record, 2018) eu trabalhei com a ditadura militar e suas sequelas psíquicas e históricas. Na verdade, fascismo e ditadura militar são temas correlatos, pois são formas da expressão autoritária.

TORSO

O torso da mulher desaba para o lado de fora da cama desfeita. Os braços caem estendidos na direção do chão como galhos de uma árvore recém-abatida. O fio de sangue em meio aos longos fios de cabelo segue na direção da porta até o vão da última tábua que separa o quarto da sala, compondo as margens de um rio da morte em seu fluxo infeliz. Não se vê se o rosto da mulher morta tem os olhos abertos. Não se vê a boca, se está aberta ou fechada. Virado para a cama, o rosto esconde o horror experimentado, o esgar de perplexidade, o espasmo do estupor final ao ver que o marido que a ameaçava matar cumpriu a promessa com tal grau de exatidão.

Comentários (1)

Guest
Mar 09

Márcia...sempre lúcida. Parabéns à Zezeu pela bela entrevista. Wilson

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