A vida é filme
Manoel Duvale
CENA 1 – CÂMERA SUBJETIVA
Existe um poeta cego tateando versos no escuro e no mais completo silêncio. A bengala, extensão de seu corpo, espera encostada ao braço da cadeira que a mão do poeta rasteje até ela. Mas você não vê o cego, pois a câmera é subje0va. O que ela mostra é o que o cego vê: o mais completo escuro.
Nessa cena você é o cego. E para dar mais realidade ao filme, você deve fechar os olhos. O cego escreve seus versos num caderninho de brochura, desses que são distribuídos às crianças na escola. No silêncio é possível ouvir o roçar da caneta no papel áspero. Áspero é o nome de seu poema.
Áspera vida
A esperar
que a pêra amadureça
áspera vida
que as mãos enrugadas
obriga a trabalhar
Áspera terra onde nunca chega a primavera
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CENA 2 NO SUPERMERCADO
Você empurra o carrinho pela seção de limpeza. De repente para e começa a pensar nas coisas da sua vida que precisam ser passadas a limpo antes que o mundo acabe, ou este ano acabe.
Existe muita coisa acumulada em sua caixa de gordura; os azulejos brancos de sua consciência mostram aqui e ali uma mancha que precisa de um bom Veja multiuso.
De repente você olha à sua volta e percebe que dezenas de pessoas estão paradas diante das gôndolas de produtos de limpeza, e como você, têm a mão esquerda debaixo do queixo e os olhos fixos em cenas abstratas, takes de suas vidas que precisam de uma boa revisão.
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CORTE
Plano geral do supermercado. Todas as seções estão vazias, com exceção do setor de produtos de limpeza.
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CENA 3 – CÂMERA SUBJETIVA
Cego, você tenta imaginar que cores e formas tem o mundo. Suas texturas e cheiros já fazem parte do seu banco de dados sensoriais. E as pessoas, de que forma você as imaginaria, já que você nunca viu uma?
E assim você escreve o roteiro de sua vida, cego para o futuro e com uma grande necessidade de passar sua vida a limpo.
Mas um bom roteiro tem sempre um final surpreendente e com uma lição ou sentimento bom. A vida pode ser um filme escrito por Almodóvar ou mesmo Jorge Luis Borges, o poeta cego. Ou a obra prima do cinema real, escrita, dirigida e protagonizada pelo autor(a). você.