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Da vi da

Bruna Chilanti Cordeiro

Davi era operário, todo dia acordava no mesmo horário, mas nem sempre ia deitar cedo. Contas a pagar, a frieza na relação com os filhos que não via há cerca de meio ano mesmo sendo praticamente vizinhos, o cusco que estava sempre com infecção estomacal e ele não tinha uns pilas pra pagar um veterinário experiente, o uniforme azul que mal cabia na protuberância corporal outrora melhor escondida e uma infinidade de "ques" que aumentavam a sua insônia.

 

Em uma quarta-feira, Davi saiu da fábrica após o almoço e foi deitar no gramado do Parque do Trabalhador, mais conhecido como o parcão da cidade, como de costume. Olhava pra cima, com uma garrafa amassada de Pepsi ao lado, tentando encontrar no formato das nuvens algo bom para salvar o seu dia. A

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depressão o tinha acometido e ele não tinha mais filtros para a sua alimentação. Justo ele, jogador nato de futebol amador no Campo do Santos, compositor do time dos guris do posto de gasolina onde ele fazia bico no final de semana. Infelizmente no ano passado Davi machucou o tornozelo e ainda manca levemente, ou seja, acabou uma das coisas que o mantinham vivo.

 

Pensou nos filhos, que saudade! Precisava convidá-los para um sorvete na Chocolateria ao lado do Banrisul e explicar que a ausência não era de fato com eles, mas com ele próprio. Que ele não via mais sentido em continuar trabalhando e o uniforme não era mais lavado há três semanas que para ele pareciam três anos. Como ele ia explicar que o relógio parou no tempo e nem duas vezes por dia estava certo? Nesse mundo de incertezas, não dava pra confiar nem nos relógios, pois até eles dependem de pilhas e cordas.

 

O bico no posto e as horas extras na fábrica garantiam o sustento da ex-mulher Flávia e dos piás. Seu maior orgulho era nunca ter deixado faltar nada para nenhum deles, nem tênis novo para o início do ano letivo, nem merenda, nem caderno de capa dura, nem lápis Faber-Castell. Davi sentia o ressentimento dos filhos por ter se separado da mãe deles, mas o que mais queria explicar era que ele estava absorto em momentos de ansiedade e não procurava ajuda psicológica porque seu pai disse que era "coisa de fresco". Mas isso ele não lembrava. A única coisa que sabia era que não podia ir à terapia. Ah o inconsciente!

 

No terreno do lado de onde estava deitado havia uma escavação, com batidas frequentes do ferro contra o solo e era o que ele utilizava para manter um ritmo respiratório. Adormeceu. Não sonhou com nada.

 

Em determinado momento ouviu risos adolescentes, latidos de cachorro, passos se aproximando. "Passos? Meu Deus do céu, que hora é?", perguntou-se. Então viu um homem, aparentemente de classe média, dizendo para ele em alto e bom som:

 

- Isso são horas de um barbado estar deitado onde as crianças brincam no intervalo da escola?

- Mas que horas são? - pergunta Davi.

- Hora suficiente pra ti pegar essa Pepsi batizada com cachaça e ir embora. Lugar de vagabundo não é aqui.

- Desculpa, não tenho esse costume e, na verdade, foi só um cochilo depois do almoço. Pelo jeito perdi a hora. - disse.

 

Davi virou as costas, bateu as gramas secas do uniforme e segurou mais uma crise de ansiedade que estava chegando. Provavelmente vai perder o emprego, se bem que isso nunca tinha acontecido antes e ele precisava muito do dinheiro. Iria se justificar e tudo daria certo. Olhou pra cima, suplicou ajuda do céu e caminhou em direção à fábrica.

 

Enquanto isso no parque, após tanto desviar do homem sujo e bêbado no meio do dia, pessoas seguiram caminhando, tomando mate e disputando corrida com seus cachorros de raça. Hora já se viu, ainda bem que tinha um cidadão de bem que mandou o marginal embora. Marginal esse que foi demitido no mesmo dia por "cortes de gastos" e se sentiu um peso maior ainda na vida dos que o rodeiam. Ao menos tem o bico no posto nos finais de semana que ele pacientemente vai mancando trabalhar por 16 horas a fio.

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