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Carla Madeira: Um corpo que escuta

Uma conversa à distância, mas bem perto do ouvido com a autora mais lida do Brasil

Carla Madeira sussurra. Sopra com delicadeza as palavras. Não no curso dos meus ouvidos atentos. Mas que fluem em direção aos mundos que um escritor é capaz de criar para suportar o real. No seu jeito manso de falar sem pressa, escolhe as palavras como se escrevesse o que diz, talvez pelo vício do escritor de procurar na escrita um modo de organizar tudo o que sente. Carla não disse, mas não esconde no transbordar de suas falas que sente necessidade diária de estar no nível de envolvimento que a literatura a coloca, ainda que tenha imensa ocupação como empresária da publicidade. Quanto à arte em sua vida, para ela, certamente “a literatura é a experiência artística mais completa”.

O Zezeu: Nós, leitores, gostaríamos de já estar lendo Carla Madeira há muito mais tempo. Por que você esperou tanto para começar a publicar seus livros?

Carla Madeira: Na verdade, eu não esperei. Depois que eu terminei Tudo é Rio, eu publiquei logo depois, um ano depois. Foi mais ou menos o tempo que eu levei para conseguir entender como eu publicaria, porque foi uma produção um pouco independente. Eu assumi a editoração, a diagramação e a impressão e a Quixote, na época, que é uma editora pequena aqui de Minas, assumiu a distribuição. Mas o que eu demorei foi a ser escritora. Comecei a escrever sem a pretensão de fazer um livro, escrevi um pouco e escrevi a cena brutal de Tudo é Rio. Me paralisou por 14 anos. Aí que eu fui retomar, 14 anos depois, estava aquilo ali meio... Eu não estava escrevendo, mas aquilo estava sendo escrito, de alguma maneira, porque eu tinha me perturbado, então, de alguma maneira, vinha na minha cabeça, de tempos em tempos. E eu acabei, depois, retomando. E aí terminei por volta de 2013, final de 2013, início de 2014. E aí, já no final do ano de 2014, eu lancei.

 

OZ: Em seus três romances você aborda os temas do amor, do desejo, da culpa e do perdão. Você acredita que a escolha desses temas é responsável por atrair tantos leitores?

CM: Então, na verdade, não tem um marco, assim, eu sempre, desde pequena, eu sempre fui muito ligada a linguagens artísticas, assim, a criar, pintar, a compor, então eu comecei a escrever um pouco nesse embalo de fazer alguma coisa que tivesse me ocupando o tempo de forma prazerosa ali, então comecei a escrever um pouco assim.

Eu acho que esses temas que eu abordo são questões que fazem parte da vida de todo mundo. Todo mundo está lidando com isso, com as questões do desejo, com as questões do amor, do perdão, da maternidade, das violências de gênero. Então, eu acho que tem uma ressonância porque já são coisas que estão dentro das pessoas, já são questões para as quais as pessoas estão sensíveis.

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O que eu demorei foi a ser escritora. Comecei a escrever sem a pretensão de fazer um livro.

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A vida inteira, fui muito influenciada pelos compositores, pela MPB, por essa linguagem poética, sintética, e acho que isso é uma grande influência.

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OZ: Uma pergunta que todo mundo faz para todo escritor, mas que pra nós também é importante saber de você: como é o seu processo criativo?

CM: Meu processo criativo é muito caótico, assim. Cada livro é uma coisa, eu não tenho... Como eu trabalho em outras atividades, eu não tenho uma rotina, assim, muito meticulosa, de escrever todo dia no mesmo horário, mas quando eu estou em processo de escrita, eu estou em processo de escuta, eu estou o tempo inteiro ligada naquilo que eu estou contando, o que eu estou fazendo, o tempo inteiro aquilo me vem, às vezes anoto alguma coisa, anoto no celular, anoto num pedaço de papel, mas efetivamente é na hora que eu abro o computador que a coisa ganha estrutura.

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OZ: O que é literatura neste mundo líquido em que já se tornou uma necessidade escrever coisas para demonstrar felicidade?

CM: Literatura é a linguagem escrita com força estética e liberdade. É se entregar a uma escuta, é um corpo que escuta, que deixa o outro falar, que deixa o outro viver. É se agarrar a uma situação, a um encontro, a uma paisagem e imaginar, ter curiosidade e se entregar a isso.

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OZ: O que você lê? Algo ou alguém te influencia? O que te inspira?

CM: Olha, eu leio mais hoje literatura, romances, mas eu gosto muito de ler filosofia, pedagogia, tenho interesse, assim, por essa investigação da existência, então são assuntos que eu estou sempre estudando e tentando conhecer, me aproximar, gosto de neurologia, são leituras que eu gosto muito, que fazem parte, assim, dos meus recursos como autora. Eu, a vida inteira, fui muito influenciada principalmente pelos compositores, pela MPB, por essa linguagem poética, sintética, e acho que isso é uma grande influência, mas eu leio muito, eu estou sempre lendo, e se eu for falar, assim, de uma maneira geral, acho que fui muito influenciada por Monteiro Lobato, por Guimarães Rosa, acho que foram duas referências, Vitor Hugo, Dostoievski, que são referências assim mais, vamos colocar assim, estruturantes, né, ao longo da vida, assim, que marcaram muito.

Agora, quando estou escrevendo, sou um corpo que está ouvindo. Então tudo inspira, tudo influencia, tudo é algum detalhe que eu quero reter, porque depois quero saber descrever ou saber levar aquilo para um livro. Então acho que, durante o processo de criação de um livro, eu estou sempre muito antenada, muito ligada a atitude para essa inspiração.

OZ: Algo mudou na escritora e na escrita do primeiro romance (Tudo é Rio) para o terceiro (Véspera)?

CM: Não sei exatamente o que mudou, de antes de cada livro me sinto tão principiante como no primeiro. É claro que tem já uma bagagem, tenho muitas trocas com o leitor, ressonância dos leitores, muitas trocas com outros autores. Então, claro que tem um amadurecimento, mas o frio na barriga, no sentido de encontrar a história, de encontrar a estrutura do livro, é sempre um desafio cheio de frescor. E hoje eu tenho uma visibilidade grande e muitos encontros, muitos compromissos. Eu acho que também isso está exigindo que eu proteja mais o meu espaço criativo e que consiga o tempo para estar comigo mesma ouvindo essas histórias, essas vozes, protegendo algum nível de liberdade, de encontrar a minha adesão com aquilo que estou fazendo. Eu acho que esse desafio vai ficando cada vez maior também.

 

OZ: Você acredita que os leitores gostam de reconhecer seus próprios dramas familiares nas narrativas?

CM: Eu acho que a gente, assim, a partir da história do outro, a gente pensa na própria história da gente, ou seja, a tragédia do outro nos ajuda a lidar com as nossas tragédias. Eu acho que isso é uma das coisas mais potentes da literatura. É esse ouvir a história do outro e, de alguma maneira, falar, "opa, espera aí! Isso, sei lá, isso junta alguma coisa que está esparramada dentro de mim, isso me ajuda a perceber alguma coisa que talvez eu não percebesse, se eu não pudesse ver, assim, um pouquinho de fora". Eu acho que isso é a grande coisa da literatura, isso que envolve o leitor, de uma certa maneira. Esse cardápio de empatias que a gente vai construindo quando a gente vai parando para ouvir o outro. Eu acho que é isso.

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Quando estou escrevendo, sou um corpo que está ouvindo. Então tudo inspira, tudo influencia, tudo é algum detalhe que eu quero reter.

OZ: É seu objetivo que suas histórias toquem o coração do leitor, fisgar pela emoção? Eu mesma me emociono muito com suas narrativas e tive uma grande empatia por Abelzinho, personagem de Véspera.

CM: Eu não penso muito no leitor quanto tô escrevendo, não fico nesse pensamento “ah, vou fazer isso pra emocionar”, eu entro na história e não é uma estratégia emocionar. Mas eu desejo contar aquela história e aquela história vai me levando para lugares que eu acho que vão fazer sentido, que eu vou tendo adesão por aquele caminho. Eu acho que é mais isso do que a intencionalidade de fazer um livro emocionante. Não é esse pensamento, sabe, não tem esse planejamento. Na verdade, não é essa relação com o leitor que tá em jogo ali, que tá em questão na hora em que eu tô escrevendo. É uma adesão com aquele acontecimento, é sentir que ele faz sentido, que eu consegui construir alguma coisa que realmente faz sentido naquele momento ali na história.

"A tragédia do outro nos ajuda a lidar com as nossas tragédias. Eu acho que isso é uma das coisas mais potentes da literatura."

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