Paris, Texas, Curiaú - Viagens íntimas pelo interior do Amapá
- juliarojanski
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Crônica de Rafael Senra

Nesse norte brasileiro, ver a estrada amanhecendo junto com o mundo é como atravessar, você e o carro, a abertura silenciosa do Gênesis. O sol nascendo bem na Linha do Equador, um parto que se dá sobre as águas do Amazonas, cuja beleza beira o indizível.
Mineiros como eu são habituados a montanhas, colinas e subidas que emolduram a paisagem. Horizontes que só se revelam no alto dos mirantes. Entre o céu e a terra firme, nas Gerais sempre há a mediação de um gigante verde, um arranha-céu ou um fenômeno geológico ancestral.
O mundo pode não ser uma terra plana, mas a Região Norte certamente o é. É intrigante e quase desconcertante dirigir tantos quilômetros por retas intermináveis, como se a estrada costurasse o ponto onde você está ao lugar remoto onde o mundo faria curva. Quase toda paisagem no Amapá oferece essa grande abertura, um espaço sem pressa que se torna ainda mais majestoso quando se avança para o interior.
Por anos, meu contato mais longínquo e profundo para além da capital do Amapá foi a cidade de Mazagão Velho – justamente o primeiro território habitado pelos colonizadores, o ponto de partida para esse projeto de ocupação da Amazônia Central. Sempre digo que Mazagão Velho parece mesclar o interior de Minas com o encanto amazônico; e, se fosse mais próxima, iria morar nessas bandas.
Mais recentemente, percorri longamente duas outras estradas que conheci antes de maneira mais tímida: na BR 156 (que liga Macapá ao Oiapoque), passei por Porto Grande, Ferreira Gomes, até chegar no município de Tartarugalzinho. E, na Rodovia do Curiaú, acessei outra bela cidade do interior do estado, que é Itaubal.
As viagens aconteceram sem pressa, permitindo apreciar as paisagens, o cheiro do mato, as refeições em restaurantes caseiros, os banhos de rio, a pausa para provar frutas locais, o pernoite em pousadas familiares. Quando se anda devagar, a Amazônia oferece uma poesia que não se encontra em mais lugar nenhum.
Eu não resistia a traçar paralelos das paisagens do interior do Amapá com as do filme Paris Texas, de Wim Wenders. Ficava imaginando que o diretor alemão iria adorar um passeio por aqui. Essa mistura de natureza selvagem com uma beleza enigmática e silenciosa, ou os lugares suspensos no tempo, que parecem esquecidos em sua existência solitária. O ritmo lento, os vazios civilizacionais, as pessoas simples.

Em Tartarugalzinho, percorri retas que eram como vértices apontados para o início do mundo. Paramos por dois restaurantes com referências à Minas Gerais, e esse dado curioso se somou ao fato de que, chegando na cidade, fomos jantar no “Mineiro” – que, na verdade, pertence ao prefeito e só serve comida típica do Norte (o nome remete ao antigo dono, este sim das Gerais).
Com seus quinze mil habitantes, Tartarugalzinho é quase a metade do caminho até o Oiapoque. A estrada é estreita, de tráfego rarefeito, e as retas que se derramam até o infinito exigem atenção redobrada – não por conta do perigo evidente, mas pelo risco do sono que acomete viajantes cansados vindos do extremo norte.
Minha ida à Itaubal do Piririm (nome completo da cidade) aconteceu mais de um mês após conhecer Tartarugalzinho. É uma viagem bem mais curta (cerca de uma hora e meia de Macapá). Primeiro visitei o centro da pequena cidade de quatro mil e quinhentos habitantes, para depois passar o dia no Balneário da Celina, localizado a poucos quilômetros dali.

No caminho, cruzamos com as paisagens do Curiaú, com seus enormes e vastos campos de alagados, onde se avistam as criações de búfalos a dar alguma perspectiva naquelas paragens a se perder de vista (“Curiaú” é uma corruptela de “Criaú”, que quer dizer “criador de boi preto”, referência aos criadores de búfalos). Primeiro há o Deck do Curiaú, e depois passamos pela Vila do Curiaú; dividida pelos quilombos Curiaú de cima, de baixo, e Curiaú pequeno. Cruzamos também com inúmeras vilas, como Abacate da Pedreira, Periurbano, Macanan Grande e outros.
Embora a economia do Amapá não seja agrária, a estrada do Curiaú se estende por campos arados que se confundem com o céu. Entre as áreas descampadas, surgem pequenas casas de madeira, perdidas no meio do nada — ou, melhor dizendo, plantadas no meio de tudo aquilo que realmente importa para seus moradores.
Para alguém como eu, que vem da Região Sudeste e mora no centro da capital do Amapá, é muito fácil cair na tentação de romantizar a vida das pessoas que vivem nesses quilombos. Os atuais moradores dali são descendentes de negros escravizados, muitos deles trabalhadores levados para o Amapá no Séc. XVIII para a construção da Fortaleza de São José de Macapá. Estudos apontam que muitos escravos que fugiram do trabalho pesado na Fortaleza se refugiaram naquele lugar e fundaram a Vila do Curiaú. Mesmo atualmente, muitos desses quilombolas são ainda obrigados a trabalhar com serviços braçais, por vezes sem carteira assinada, sem acesso digno à educação, saúde ou serviços básicos.
Ainda assim, a abundante natureza amazônica embeleza aquele espaço visivelmente comunitário, com casas próximas umas das outras, e uma vida comum balizada pela prática das danças do Marabaixo (um ritmo trazido pelos escravos e aclimatado no Amapá) ou pelas ladainhas a São Lázaro, Santo Antônio ou Santa Maria.

Mas o que mais me marcou no caminho para Itaubal foram algumas pequenas casas quilombolas, pintadas com um azul pastel desbotado (pena que não tirei foto e nem achei na internet; fica para a imaginação). Nada nelas é glamouroso; ao contrário: a tinta barata, aplicada às pressas, produziu superfícies irregulares, quase trêmulas. E, no entanto, me apaixonei por aquelas paredes que parecem o céu hachurado dos quadros impressionistas de Van Gogh ou Monet.
Aquelas casas de azul pastel mal pintadas ficaram comigo, e cresceram no meu íntimo, transformando-se em pequenos talismãs pessoais. A mera lembrança delas já me enche de certa alegria silenciosa, me trazem energia sobretudo em dias de muito trabalho e correria. Como se fosse um afeto que devolve ao chão, que me ancora, cujo sentimento de gratidão por estar no Amapá parece dizer que estou no lugar certo.
Esse sentimento prosaico e terno contrasta brutalmente com outras coisas que observo ao meu redor por aqui. Dias depois da viagem para Itaubal, eu andava pelo meu próprio bairro, e vi o dono de uma mansão fazendo obras, trocando o seu passeio — que era justamente o único trecho da rua até então em perfeito estado. Em volta, tudo segue irregular, esburacado, como é padrão nas áreas urbanas do Amapá. A obra só foi feita onde não era necessária.
O Brasil se tornou esse país saqueado por uma elite que não tem nem onde gastar tanto dinheiro. Há alguns meses, uma senhora rica aqui perto de casa foi avisada que a obra da sua casa nova tinha sido finalizada. Ela mandara azulejar o chão, as paredes e o teto. Ao visitar a obra pela primeira vez e se deparar com o resultado, ela apenas disse “não gostei”. Os pedreiros tiveram que arrancar tudo e recomeçar do zero.
Eu particularmente teria muita vergonha de esbanjar essa gastança desnecessária num estado onde mais da metade da população vive com uma renda média de menos de um salário mínimo. Um estado onde mais de 90% das residências dependem de poço artesiano e não tem saneamento básico adequado.
Tudo isso me faz pensar novamente nas viagens que fiz. Nos quartos simples das pousadas familiares, nas camas antigas, na comida caseira, na conversa com gente que sabe receber sem ostentar, na falta de luxo de uma vida autêntica.
No meu íntimo, aquelas casas azuis do Curiaú tornaram-se sinônimo de felicidade. Como se fossem tótens de uma poética amazônica e brasileira, uma singeleza resiliente que é parte do nosso tesouro enquanto povo e cultura.





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