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E ir para a casa da titia… É passeio?

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • 9 de jun.
  • 4 min de leitura

 

Em um lar repleto de cores e risos, uma menina de olhos curiosos e cabelos que dançavam ao vento, como se tivessem vida própria, até então a mais nova dos filhos, tinha quase cinco anos, mas sua mente já era um pequeno universo de organização e métodos que surpreendia qualquer adulto.

 

Desde muito cedo, aprendera a separar suas roupas com uma precisão que surpreendia todo mundo, talvez tenha trazido consigo esse dom, desde quando nasceu, pois, ninguém lhe ensinara.

 

Não era uma divisão qualquer; para ela, havia as roupas de casa, macias e confortáveis para as brincadeiras do dia a dia; as roupas de “pertinho”, para ir à padaria na esquina ou à vendinha; as roupas de amiguinha, um pouco mais arrumadinhas, mas que ainda permitiam cambalhotas e aventuras no quintal alheio; e, por fim, as preciosas roupas de passeio.

 

Ah, as roupas de passeio! Eram as mais especiais, guardadas com esmero, geralmente com estampas de flores, laços ou babados, que a faziam sentir-se uma princesa pronta para um grande evento.

 

Por isso, quando a mãe dizia:

 

— Minha filha, vá se aprontar!

 

Seus olhinhos espertos logo se estreitavam em uma pergunta estratégica:

 

— Pra onde a gente vai?

 

A resposta era crucial, pois dela dependia a escolha do traje perfeito para a ocasião.

 

Se a resposta era "para passear", a menina, com um entusiasmo contagiante, corria para o banho, ensaboando-se rapidamente, e então escolhia seu vestido de passeio favorito, um par de sapatos brilhantes e, por vezes, um laço caprichado nos cabelos.

 

Sua imaginação voava longe, pois passear, para ela, significava aventuras, ir ao parque, com seus balanços que tocavam o céu e escorregadores que desafiavam a gravidade; visitar a sorveteria, onde os sabores eram tão vibrantes quanto suas roupas; talvez até mesmo uma ida à praça, para ver os passarinhos e sentir o cheiro das flores e para cada tipo de passeio ela tinha um tipo de roupa diferente, pois já se imaginava vivendo a promessa de um dia memorável.

 

No entanto, com o tempo, uma sombra de desilusão começou a turvar o brilho de seus olhos, pois incontáveis vezes, ela se aprontava, escolhia seu vestido mais bonito, o coração repleto de expectativas, apenas para descobrir que o "passeio" terminava na casa de uma de suas tias, não que ela não amasse suas tias, elas eram maravilhosas, com cheiro de bolo recém-assado, refrigerantes e abraços apertados.

 

Mas ir à casa da tia, por mais legal e aconchegante que fosse, não era, na sua mente, a mesma coisa de um verdadeiro passeio, pois não havia balanços altos, nem sorvetes de três bolas, nem o vento e as ondas do mar, nem as águas tranquilas de rios e lagos de balneários, nem as emoções do desconhecido.

 

A cada "passeio" que virava "casa da tia", a pequena chama da confiança diminuía um pouco e cansada de se arrumar para o que ela considerava uma "enganosa aventura", uma revolta infantil começou a borbulhar em seu peito.

 

Até que um dia, após mais um convite para "passear", e antevendo o destino real, ela cruzou os bracinhos, o lábio inferior ligeiramente tremendo, e disparou, com uma mistura de indignação e uma sabedoria precoce:

 

— Já estou pronta. – A mãe olhou admirada, vendo a filha toda desarrumada, custando acreditar no que ouvira, exclamou:  

 

— Pronta que nada, menina, vai te arrumar direito. – Determinou a mãe, muito séria.

 

— Então para onde nós vamos passear? – Perguntou mais uma vez, sem deixar brecha para desviar da resposta, no que a mãe de pronto respondeu altiva;

 

— Vamos passear na casa de sua tia.

 

— E ir para a casa da titia é passeio?! – E ficou repetindo diversas vezes a mesma pergunta que estava entalada em sua garganta, na garganta de uma menina de apenas cinco anos de idade:

 

— E ir para a casa da titia é passeio?!

 

A pergunta, em sua inocência, revelava a decepção de promessas não cumpridas, de expectativas frustradas, ela queria e ansiava por clareza, honestidade e pasmem, naquela tenra idade, não queria mais ser iludida, não queria que a palavra "passeio" fosse desvirtuada, almejava que o rótulo combinasse com o conteúdo, que a promessa se alinhasse à realidade, se fosse para ir para a casa da tia tudo bem, mas não precisava enganá-la.

 

A frustração da menina, seu grito de "E ir para a casa da titia é passeio?!", é o clamor de um coração que se sentiu enganado, que esperava algo e recebeu outra coisa, é a nossa própria voz quando as expectativas se chocam com a realidade.

 

Talvez o amor, a felicidade e os propósitos da vida não sejam sempre os "passeios" grandiosos e vibrantes que idealizamos, a lição é que a beleza não reside apenas no destino prometido, mas na capacidade de encontrar alegria e significado, mesmo quando o "passeio" nos leva a um lugar que, a princípio, não era o que esperávamos, pois a sabedoria está em aprender a recalibrar nossas expectativas, a valorizar o que recebemos e a discernir a verdadeira natureza do amor, que muitas vezes se manifesta na simplicidade, na acolhida e na honestidade de viver o que a vida realmente nos oferece.

 

 

José Fernandes: Advogado, Escritor e Jornalista.

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