Os três términos | Bruna Chilanti Cordeiro
- Silvio Carneiro
- há 4 dias
- 5 min de leitura

Estava sempre em cima das mesas da cafeteria em que morava, em uma cidade grande, próxima à capital. Tinha uma parede do local que era de vidro, às vezes limpo, às vezes sujo, com mãos de crianças e seus doces favoritos. Muitos carros passavam pela rua e eu sempre achava estranho a forma diferente de cada um, assim como as cores e os tamanhos, pois eu até tilintava com o passar dos grandes quando eu era servida em cima de uma mesa fina de madeira.
Em uma manhã ensolarada de sábado, logo quando o estabelecimento abriu, entrou uma moça e fez um pedido. Olhei da cozinha, ansiosa por trabalhar porque estava há muitas horas parada e confesso que isso me traz um grande tédio, sobretudo quando fico de ponta-cabeça. Fui levada carinhosamente em uma bandeja junto com o que parecia ser uma bola fofa de queijo. Pousei como um avião em cima da mesa e escorreu um pingo de líquido quente na minha orelha trazendo uma sensação de conforto em meio à gritaria dos outros pedidos que eram feitos no mesmo instante.
Olhei para a moça que me segurava. Ela era bonita, tinha um cheiro doce, mas não enjoativo como o açúcar que colocavam dentro de mim. Deu o primeiro gole e me manchou de tinta marrom clara que tinha nos lábios, quase parecido com o líquido que continha em meu interior. Cada gole ela dava um suspiro, e confesso que entendo, eu cheirava muito bem naquele dia e sabia que poderia preencher o ser de qualquer pessoa. Pelo que vi, a moça estava em seu computador, trabalhando e suspirando diferente, pesado, nem parecido com o que saía de suas narinas quando tomava um gole do que eu carregava.
Na mesa ao lado sentou um casal ou o que parecia ser um. A mulher tinha voz de homem e o homem de mulher, mas eu não me importei, só achei curioso. Começaram a conversar com um tom médio, mas tanto eu quanto a moça da minha mesa conseguimos escutar. Ambos prendemos a respiração, a conversa era séria e quem sabe poderia render uma boa história futuramente em formato de conto. A voz da mulher dizia:
- Você sabe o quanto aprendemos juntos, crescemos como pessoa, criamos nosso filho, construímos nosso lar. És meu melhor amigo, meu parceiro de jornada, minha base. Há muito tempo estamos conversando sobre a rotina, o quanto cansamos e o pouco que estamos dando um para o outro. Não serei hipócrita de dizer que o problema não é você, sou eu, porque o problema é nós. O nosso 'nó' íntimo rompeu há muitos anos e o 'nós' acabou sem ter para onde ir. Decidi que é hora de seguirmos caminhos diferentes, mesmo ainda nos amando, mas precisamos ter coragem de admitir isso, eu admito.
Tu sempre serás meu melhor amigo e meu grande amor, mas não te vejo mais como parceiro.
Senti que esfriei por dentro, literalmente.
Neste momento, o garçom trouxe o lanche deles, educadamente pedindo licença dentro de um silêncio sepulcral que durou o que pareciam ser anos. A moça me segurava pela orelha desde que o diálogo começou, paralisada com o que ouvira. Era inevitável, pois o clima que pairava no ar era desastroso. Tomou um gole e ambos ficamos reflexivos, imaginando o que estava passando na cabeça do homem que estava impedido por si mesmo de responder.
Logo, disparou:
- Eu entendo, só estou tentando processar. (lágrimas corriam pelo rosto de ambos) Como vamos contar pro Heitor? Como vamos dividir nossos bens? Como vamos assistir filme um sem o outro? Como vamos ao parque, tomar chimarrão sem estarmos juntos? Como vamos…
E foi quando ela colocou a mão sobre a dele, sustentando um olhar de "vai ficar tudo bem", que ele se acalmou. Ela comeu e bebeu, ele deixou seu lanche intocado, tão intocado que esqueceu de pedir pra embrulhar e levar. Saíram cabisbaixos, entraram no mesmo carro e foram para o futuro de suas vidas. Até hoje me pergunto se estão bem, ambos parecem ser gentis e é realmente uma pena ter visto acabar assim.
Não obstante, minutos depois, sentou um senhor na mesa à frente, de camisa abotoada menor que o tamanho dele, sozinho. Nem reparamos muito, porque estava fora do campo de interesse, ainda mais depois daquele conflito ao lado. Ninguém veio pedir o que ele queria pra beber nem comer, pelo menos não que tenhamos visto. Cerca de cinco minutos depois entrou uma mulher, magra, morena, alta, da mesma idade dele. Segurava seu celular com uma capinha gasta pelo tempo, nada mais. Nenhuma bolsa, nenhum jornal ou livro.
Impaciente, ela olhava para os lados buscando algum atendimento que não veio. Ele de cabeça baixa, sentado à frente dela, não falou absolutamente nada. Então, a situação começou a chamar a nossa atenção, pois estávamos ansiosos pelo atendimento àquela mesa. Sem sucesso, sem olhar para ele, ela começa com um diálogo inaudível, mas parecia estar brava e decepcionada. Tirou sua chave do bolso e jogou em cima da mesa, levantando enquanto fazia isso e indo embora, sem mais nem menos.
O senhor seguiu com a cabeça na mesma posição inicial, não mudou a expressão, não se mexeu, não falou, não tentou. Aceitou a situação no que parecia ser um animal prestes a ser morto, com olhar triste, com destino fatal. E neste momento de lamúria chegou o garçom para atender carregando seu melhor sorriso, pedindo desculpas por ter demorado. O senhor deu um leve aceno de que não precisava nada e saiu, devagar, em direção oposta à que foi a mulher. Carregava com ele um molho de chaves e uma tristeza palpável no ar.
A moça que estava comigo deu um suspiro gigante ao olhar a cena e achou extremamente curioso ter dois términos em sua frente na mesma manhã. Ficou pensando em como as pessoas são diferentes, como os começos são diversos e incontáveis formas de pôr fim às coisas. Cada pessoa carrega consigo um mundo de certezas, incertezas, refletem comportamentos de seus pais, de seus cônjuges, do que o mercado exige, do medo do que os outros pensam e de o que pensam sobre si mesmos. Ainda que seja tão inconstante a forma de cada um se relacionar, o fim é o mesmo, sempre triste, carregado de um pouco de desesperança.
Deu um último gole e terminou o líquido marrom que eu carregava. "Meu santo pai do céu, mais um término hoje!", pensei. Mas percebi que a moça de perfume adocicado me olhou e disse em voz alta para o garçom que passava:
- Me vê mais uma xícara de café, por favor?
Assim como houve esse término, haverá recomeço. Nem sempre é de todo ruim.
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