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O Homem Que Queria Dizer Tudo com uma Linha

  • juliarojanski
  • há 17 horas
  • 5 min de leitura

Como Hugo Pratt trouxe uma resposta à crise do herói na modernidade

"Queria chegar a dizer tudo com uma linha."

— Hugo Pratt


1. O herói solitário está entre nós


A fantasia de ser um homem especial — aquele que vê antes dos outros, que age à revelia das instituições, que carrega dentro de si uma verdade inegociável — é uma das mais persistentes da cultura ocidental. Ele pode ser o “lobo mais esperto da matilha”, o visionário, o herói trágico, o homem que flana pelos bastidores da história carregando um segredo. Desde os tempos mais antigos, obras de arte deram corpo a esse arquétipo: Ulisses, o mais astuto dos gregos, ousa desafiar os deuses com sua inteligência e astúcia.


A literatura moderna, no entanto, parece cada vez mais desconfiada desse modelo. O “lobo da estepe” de Hermann Hesse, por exemplo, se mostra apenas um cinquentão alcoólatra e deprimido, por vezes preso a um narcisismo estéril. Ainda assim, o mito resiste. E nos quadrinhos, uma das formas narrativas mais híbridas e resilientes da modernidade, esse tipo de entidade encontrou uma nova máscara: a de Corto Maltese, o marinheiro melancólico criado por Hugo Pratt – cuja própria vida se confundiu com a fantasia do herói errante.


2. Um autor tão errante quanto sua criação


Hugo Pratt nasceu na Itália, filho de um militar, e passou a juventude na Etiópia em plena guerra. Acabou em um campo de concentração na África Oriental, sendo deportado de volta à Itália com a ajuda da Cruz Vermelha. Nos anos seguintes, tornou-se autor de quadrinhos, viveu na Argentina, no Brasil, no Canadá, na Inglaterra, na Suíça.



Pratt era, segundo um amigo de infância, um verdadeiro "astro do rock" — carismático, contraditório, sempre em fuga. Em suas entrevistas, sua personalidade carismática e eloquente fazia com que o assunto girasse mais em torno de si mesmo do que de seus quadrinhos. Desde a juventude, o autor tinha princípios firmes e uma postura independente, características que iria plasmar no personagem Corto Maltese.


Ao longo de sua carreira, o individualismo de Pratt lhe rendeu relações pessoais conturbadas, seja com seus parceiros de trabalho (como o roteirista Héctor Oesterheld, autor da prestigiada HQ El Eternauta, que virou série pela Netflix recentemente) ou suas namoradas e esposas. Pratt construiu sua biografia quase como um personagem — um “homem do mundo”, que parecia mais interessado em viver aventuras do que em explicá-las. E é essa aura que se entranha nas páginas de sua obra-prima.


3. Corto Maltese


Alguns autores ficam eternamente associados aos principais personagens que criaram; como o belga Hergé em relação à Tintin ou o argentino Quino em relação à Mafalda. Do mesmo modo, o assunto prioritário quando se fala de Hugo Pratt é Corto Maltese. Criado em 1967, Corto é filho de um marinheiro inglês e de uma cigana andaluza. Não representa pátria alguma, exército nenhum, bandeira nenhuma. Seus roteiros misturam acontecimentos históricos com lendas, figuras reais com personagens inventados: Jack London, Butch Cassidy, Rasputin.


Com seu chapéu de oficial e expressão indecifrável, Corto atravessa tudo isso com uma ambiguidade encantadora. Ele pode agir como um herói, mas frequentemente apenas observa; pode fazer justiça, mas sempre à sua própria maneira. Se Ulisses era o símbolo da astúcia, Corto é o ícone da recusa — da recusa em se deixar enquadrar por qualquer narrativa fácil de heroísmo.



4. A linha que diz tudo


Mas não é apenas na narrativa que essa recusa aparece. O traço de Pratt também foi se tornando cada vez mais livre. Nos anos 1960, sua arte ainda mostrava forte influência de Milton Caniff, com composições cheias de detalhes e contrastes. Com o tempo, no entanto, seu estilo tornou-se mais sintético, mais direto, quase caligráfico. Desenhava os contornos com marcador e as sombras com pincel, criando um contraste expressivo entre controle e fluidez.


Em Jungleman (1950) podemos ver como era o traço de Pratt na sua primeira época,

bastante influenciado por Milton Caniff.


Sempre achei intrigante essa diferença visível de materiais na arte de Pratt, com a espessura das sombras contrastando com os sinuosos contornos. Outra curiosidade é que, muitas vezes, ele contava com assistentes para desenhar cenários ou veículos — Pratt queria concentrar-se nas figuras humanas, nos gestos, nos rostos, nas nuances mínimas.


Há nesse estilo algo de profundamente simbólico: ao abandonar o excesso, Pratt parecia buscar uma expressão mais pura daquilo que Corto representa. Como o autor Flavio Colin no Brasil, que trocou um estilo mais concreto (também inspirado por Milton Caniff) pela estilização inspirada nas xilogravuras de cordel, Pratt também caminhou rumo à simplificação.


Arte do brasileiro Flavio Colin.


Contudo, a intenção do autor italiano nesse processo era mais subjetiva, quase espiritual. Não queria retratar um mundo, mas sugeri-lo com o mínimo de linhas possível. Como quem acredita que a verdadeira essência das coisas não está em suas bordas, mas nas lacunas. Eu particularmente aprecio mais essa fase final de Pratt, distante do realismo e com um minimalismo gráfico tocante. Em tempos de inteligência artificial, esse tipo de desenho me parece ainda mais especial, pois em cada nuance podemos perceber um traçado com calor humano, através de linhas trêmulas, ranhuras do pincel e escolhas visuais inusitadas.


Nos últimos anos de vida, já debilitado por problemas de visão, diabetes e o peso de uma vida errante, Pratt ainda desenhava — e talvez suas páginas mais comoventes sejam justamente as mais inacabadas. Sua arte virou quase storyboard: traços irregulares, pinceladas falhas, espaços em branco. E, no entanto, ali há uma força viva, quase um sopro.


O maravilhoso estilo de Hugo Pratt em sua fase final

(página de Les Scorpions du Desert - Brise de mer, de 1992).


5. O espírito que permanece


Ler hoje as HQs de Corto Maltese é como reler uma antiga carta que nunca foi enviada. Há nelas o chamado à um tipo diferente de aventura, nem tanto gloriosa, mas feita de silêncios, desvios e hesitações. Corto não brada gritos de guerra, preferindo observar, perguntar, refletir. É um herói da dúvida, e talvez por isso permaneça tão atual.


Foi publicada no Brasil pela Editora Trem Fantasma uma ótima biografia de Pratt, intitulada A Mão de Deus. De acordo com Ángel de la Calle, autor da obra:


“Podemos considerar que, nos quadrinhos, o século XX foi O Século de Hugo Pratt. (…) A grandeza de sua obra reside no fato de que ela será lida até o dia em que seus livros forem apenas pó de papel levado pelo vento.”


Página 50 de Morgan, de 1995, última HQ que Pratt publicou em vida.


A obra de Hugo Pratt nos deixa pensando que, no fundo, talvez a fantasia do herói solitário nunca tenha sido sobre força, mas sobre liberdade. E Corto Maltese provavelmente é uma das versões mais honestas desse mito. Não porque acredite ser especial, mas porque escolheu viver como se a vida, mesmo imperfeita, ainda merecesse ser percorrida com elegância, ironia e uma bússola moral só sua.


Rafael Senra Coelho é multiartista, escritor e professor. Escreve semanalmente na newsletter Além da Letra.


 
 
 

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