Fernando Canto e a geografia do invisível: uma leitura de "Um pouco além do arquipélago, onde acho que Deus mora”
- juliarojanski
- 3 de ago.
- 3 min de leitura

"Um pouco além do arquipélago, onde acho que Deus mora" é mais do que um título poético — é uma chave de leitura para toda a obra de Fernando Canto. Publicado pela editora O Zezeu em 2025, o livro carrega o sopro anterior a um mundo em reclusão, como se já adivinhasse o tempo de recolhimento que viria com a pandemia. No parágrafo de abertura, o autor traça uma cartografia afetiva, conduzindo leitores e leitoras por coordenadas íntimas de memória e imaginação. “Considero este livro um apanhado de escritos nos quais percebi brotarem de seus corpos de letras uma essência antes latente, à espera de nova interpretação e novos significados”, anuncia Fernando no prólogo.
Trata-se de um convite generoso à releitura do visível e do invisível. Um oráculo literário dividido em três partes — “prosas poéticas”, “poemas” e “contos & crônicas” — que reúne 40 textos, sendo 24 inéditos e 16 resgatados de antologias, blogs (como os de Elton Tavares, Alcinéia Cavalcante e Heraldo Almeida) e livros anteriores do autor, como EquinoCio (2004), Canção do amor enchente (2012), Literaturas das pedras e Mama Guga (ambos de 2017). Nessa coletânea, Fernando revisita décadas de produção com textos que vão de “Rumo ao pó das estrelas” (2007) a “Querido natal”, escrito ainda em 2001, logo após os atentados de 11 de setembro. É uma obra sobre a simplicidade — e sobre como, nela, habita a transcendência.

A editora O Zezeu, responsável pela publicação do livro, prepara agora um novo marco para a 3ª Folia Literária Internacional do Amapá: a reunião da obra completa de Fernando Canto, em parceria com o Governo do Estado, que pratica como política pública cultural a republicação de obras antigas às quais o leitor já não tem acesso. “Foi um desejo do próprio Fernando que nossa editora cuidasse de seus livros inéditos e da reunião de sua obra”, conta a escritora Lulih Rojanski, que, ao lado de Silvio Carneiro, realiza o trabalho editorial. Sônia Canto, viúva do autor e responsável por sua obra, conduz os projetos para que cada livro pronto para entregar ao leitor tenha a sensibilidade que Fernando Canto teria se ele mesmo escolhesse a capa, as cores, as fotografias. “O Fernando partiu sabendo que sua obra estaria em boas mãos. Isso nos move — e também nos comove profundamente”, afirma Sônia.
Natural de Óbidos (PA) e radicado no Amapá — onde dizia estar “pegado de galho”, Fernando Canto foi sociólogo, professor, músico, compositor e uma das vozes mais potentes da literatura nortista. Sua escrita não apenas contava histórias: revelava o que a paisagem e as pessoas carregam de mais profundo. Como afirmou o jornalista Elton Tavares, amigo próximo do autor: “Fernando escreveu o Amapá como ninguém e criou uma literatura fantástica. Um homem que soube traduzir o invisível livro a livro, música a música, gesto a gesto. Ele mereceu cada aplauso e seu legado merece muito mais”.
Essa dimensão simbólica da obra se impôs naturalmente na homenagem feita pelo Sesc Amapá, durante as celebrações do Dia do Escritor. Mesmo ausente fisicamente, Fernando Canto foi o grande protagonista do encontro — não apenas pelo impacto emocional do evento, mas sobretudo pela força que sua obra ainda exerce sobre leitores, críticos e colegas de ofício. O ponto alto foi, justamente, o lançamento de Um pouco além do arquipélago, onde acho que Deus mora, livro que reafirma a sensibilidade e o talento de um autor que soube ouvir os sussurros da floresta e os silêncios dos rios, traduzindo-os em palavra viva.
A homenagem do Sesc Amapá, mais do que um tributo, foi uma reafirmação de que a literatura de Fernando Canto continua viva, atual e necessária. Quem quiser conhecê-lo — ou reencontrá-lo — basta abrir seus livros. Ali mora um pouco de tudo o que somos e, talvez, como o título sugere, um pouco de onde Deus também escolheu morar.





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