Era uma terça-feira, abri a garrafa de vinho chileno Shiraz (na França, a uva é chamada Syrah), bebi apaixonadamente. Não se deve beber assim numa terça-feira, é o que dizem. Não me importa. Je puis donc boire tout mon soûl [já posso beber a todo tempo]. Porque não há tempo certo para a poesia, todo instante é único – Embriagai-vos! Baudelaire já não era então minha única companhia. Canta também, ó Musa, a glória de Bandeira: Evoé Baco! Bem poderia ser um bacanal, “que tudo emborca e faz em caco”, mas estamos cansados. Vejo por todo lado gente dada ao gozo da atividade, da normatividade, da hiperatividade, sobra pouco tempo para o gozo da criatividade, da entrega indesculpável ao outro, da partilha e do toque das mãos, do olhar demorado, do dolce far niente dos italianos. Todo mundo hoje nega o ócio – tudo é um negotium. Que ótimo! Mas o que estou dizendo? Como assim não se goza sem sentido, não vistes quantos há desocupados dentro de casa, deitados na cama, rindo e comendo, sobretudo comendo? É culpa da bebida, onde já se viu... In vino veritas! No vinho, a loucura! É que falo de outra coisa, vocês não veem? Falo de um mal-estar da civilização – não mais o mal de Freud, é verdade, porque nada mais reprime ou recalca, tudo é permitido, abaixo o patriarcado, o enfado das autoridades! Que venham os enlatados e os enlutados! Ainda bem temos as garrafas – sous ma prison de verre [no meu cárcere de vidro], diz o vinho, o poeta, o lunático. “Não existe pecado do lado de baixo do Equador…”, diz o cantor, mas ninguém ouvia.
São três horas da manhã, eu já não vejo o chão sob meus pés.
Seria um sonho? É certo que acordei tendo a cabeça às voltas com redondilhas de uma quarta-feira qualquer, e suas cinzas, prefiguração de um destino pós-carnaval, pós-traumático, pré-judicial... Os versos pareciam se reunir no teto, rodando e rodando, feito as cirandas e os linchamentos, atraídos pelas calhas dos moinhos de vento do sonhador. I have a dream... nenhuma disposição de ser Martin nem mártir, porém. Tudo soava feito um cântico estropiado, fatigado, fatiado por cenas de tédio e delírio, “para cá, para lá.../ um novelozinho de linha...” Outra vez, tomava-me o mal-estar, nítido, sem reservas nem recursos, nu e cru, diante dos meus olhos, ao espelho, na tela, na teia, na rede. Há muita gente pregando, indicando caminhos: é preciso manter o corpo jovem, a mente saudável, cuidado com as redes sociais, coma verduras e evita carne vermelha, cuide diariamente da educação dos filhos, seja produtivo sem ser desumano, economize água, luz, salário, não gaste tudo, invista seu dinheiro, organize sua rotina, viaje e aproveite a vida antes dos trinta, e se puder, leia um livro, beba um chá, abandone o leite, o açúcar, o pão, o café... É um delírio! Abandonar o café? Como vocês conseguem levar tudo isso a sério? Eu só podia, símile dos rebeldes sem causa, ir fazer meu café, sem calças, para curar toda essa ressaca. Abaixo a bastilha e as braguilhas!
Mas ela persiste. Os existencialistas comentam sobre a náusea que se esgueira nos cantos do quarto, da sala, nos cânticos da rádio e das igrejas. Por muito menos, ouvimos a tristeza e a melancolia – depressão, dirão higienistas, alienistas, ansiosos por curarem o curso dos rios e controlarem as nuvens. Alienados! Outra vez o mal-estar que ressoa era nítido, retumbante, brilhoso, prefigurando sua veritas, sua vitória sobre tudo: je suis libre! Aos quatro cantos, liberdade para gozar, mas não se sabe muito bem o que desejar. Tudo já está dado, às claras, à mão. Só importa o próprio bem-estar. É bom ter companhia por um tempo, depois é melhor ficar só, mas só até o tédio surgir de novo, tem aquele show, bora lá, mas se não tiver onde sentar cansa, melhor voltar cedo, o trabalho amanhã estará pesado, quem dera fosse já sexta-feira, ia beber todas, não dá para beber todas, lembrei da dieta, do médico, do personal, do saldo no banco, acredita que o arroz aumentou de novo, tem que economizar para aquela viagem, mas cansa tanto viajar, se divertir dá trabalho, cansa tanto conversar, e olha que é só segunda-feira... Era já quinta, na verdade. Voltei à minha garrafa de vinho Shiraz (uva de sabor encorpado e rugoso, uma delícia) – desejava algo, fosse uma revelação ou um achado ou minha perdição. O que é mesmo que desejamos? Adiar a morte para... envelhecer para... privar-se de certos prazeres para... Para onde? Qual a finalidade de todas essas receitas de bem-estar, se ainda estamos tão mal das pernas?
Eu pelo menos estou. Da janela, vejo muita gente feliz, é verdade. Na tela, muita gente esbelta, é verdade. Na rede, muita gente autoconfiante. É verdade, a liberdade está na alegria de se pertencer, e pelo visto todos estão pertencendo cada vez mais a si mesmos, e se perdendo em seu quarto escuro... No calor da noite insone, quantos ainda se mantém autoconfiantes, esbeltos, felizes? Se eu não me amar, quem o fará? – dizem as más línguas. Como é mesmo o nome daquela dor com a qual acreditei ouvir o fim do mundo, mas era só o começo? Ah o amor! Com o vinho dos amantes chegaremos vers le paradis de mes rêves [ao paraíso dos meus sonhos]. Embriagai-vos! Não mais de vinho, mas de amor, desse suposto zelo com sua pele, seu pelo, seu porém. Ah o amor! Dura algo mais que uma noite, é verdade. Mais que um story, talvez. Menos que um pecado, certamente. Num mundo sem deuses, ninguém perdoa o que foi feito no verão passado, do lado de baixo do Equador. O amor só dura uma pitada de autoestima e de afago ao que folgo ser, e se você não acredita, pode apostar que a fila anda, ando mesmo sem tempo para ladainhas, para dor de cabeça tomo remédio, é tchau e benção! Ah esses amantes! Tão rígidos em sua licenciosidade! Construíram uma farmácia para se curarem do amor [farmácia: do grego phármakon, que diz do remédio ou do veneno, a depender da dose]. Haveria mesmo de concordar, amar é uma droga...
São três horas da manhã, eu já não sinto mais nada sobre a minha cabeça.
Na verdade, tudo parece estar rodando e rodando e voltando ao mesmo ponto de onde partiu. Libertinagem – para que ser livre o tempo todo, se eu posso beber? “Tenho todos os motivos menos um de ser triste”, ouço o Bandeira. O mundo vai mal, mas que mal há, se eu não fizer nada? Eu, contudo, ainda vivo de esperança, embora não pareça ou não precise. Nesse quarto escuro, apesar do alarido, estamos sozinhos. Ouço, porém, os que clamam no deserto, aqueles mantidos em folhas ressecadas pelo tempo, desgaste que os torna valiosos desde o silêncio das páginas. Quem tem ouvidos para ouvir, leia. Era outra vez Baudelaire que cantava: tout cela ne vaut pas, ô bouteille profonde! [tudo isso não vale a pena, ó garrafa profunda!] Quem ainda quer ouvir poetas e trapeiros em vez de blogueiros? Não se pode ouvi-los evitando a embriaguez. Onde está vosso copo, ó desertores? Tudo anda sóbrio demais. É tudo preto no branco, não aceitas menos que isso, nem mais... Onde ficam os (cinquenta) tons de cinza? Eu não sei ser livre, deem-me no que acreditar, deem-me alguém! Esses gritos que ouço, na praça e nas casas, dos que gozam rindo e comendo, sobretudo comendo, parece o último suspiro da sanidade. Ser livre cansa. Melhor seguir a manada, e sua incrível arte de amar à prestação, por contrato, até passar a fome. Mas a fome nunca acaba.
Para não ouvir tudo isso, bebo, embriago-me com versos, até que o mundo, ao inverso, seja outra vez habitável. Mas não se pode fugir do mundo. Ninguém pode. Nem mesmo a morte é uma fuga, ela é só a outra face da escuridão. Acreditar apenas no que os olhos veem é não ver mais do que a fria carne, a ser roída pelos vermes apesar das plásticas e platitudes da aparência de felicidade. Só umedecendo os olhos lhes retiramos as vendas. Vender a própria liberdade, por medo, a alguém que prometa recompensar a desilusão e o vazio, é só outra forma de morrer, em vida. Mortos-vivos não caminham apenas em telas. Mas o que estou dizendo? Deve ser o vinho, essa honraria dos deuses aos mortais que não desejam morrer, mas viver eternamente livres... In vino veritas. No vinho, a vida! Não vale a pena fazer tudo enrijecer, nem tudo deve ser tão inflexível. Há tempo para tudo, sobretudo para a embriaguez, aquela que desfaz as travas e desperta as taras, que faz dobrar os joelhos por um amor de carne quente, que não se deixa enganar por falsos profetas ou por poetas sem inspiração. Às vezes, se perder é caminho – ouvi alguém dizer. “Só não se perca ao entrar no meu infinito particular...”, diz a canção, e eu ainda canto, apesar do amanhã, do tédio e da náusea, apesar dos cansados e hiperativos, apesar de você... Ah o vinho! Quanto mais velho, melhor. Assim como os livros, que se depuram com os anos no paladar dos leitores apaixonados. Tu lui verses l’espoir, la jeunesse et la vie [tu lhe dás a esperança, a juventude e a vida]. Ah os livros! Sou muito mais feliz embriagado com eles... Mas o que estou dizendo? Vocês não veem?
São três horas da manhã, e eu só quero voltar a dormir.
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