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Três quartos de rio | Mathias de Alencar

  • juliarojanski
  • há 5 dias
  • 4 min de leitura

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Uma vez, sentado à beira do rio, ouvi a senhora, uma velha em seus dissabores, dizer para os homens que a acompanhavam com duas garrafas de cerveja, por certo filhos, vizinhos:

 

— Eu não sou bruxa, sou santa.

 

Rapidamente movi meu rosto, entretido. Não é todo dia que o rio nos diz coisas que a vida demora a conceber.

 

— Papai sempre foi homem indigno, dissera o da esquerda, olhos dispersos, ressaca antes mesmo da bebedeira, moral por certo, ressaca moral.

 

— Deixe o morto quieto, o terceiro comentou carrancudo, era o que mais bebia, sabia que eu observava toda aquela confabulação.

 

— Não sou bruxa, ouviram bem. Não sou bruxa.

 

A boca sem nenhum dente, ou com apenas 3, no máximo, reclamava sua cota de valor, eu achei. Mas eles demoravam a desfiar o assunto, eu nunca sequer podia imaginar ali qualquer ironia, porque o tom era fúnebre, o pai devia ter morrido ainda ontem, ou na quinta talvez.

 

Voltei-me na direção da correnteza. Olhar a água me dá agonia, ela se recusa a ficar parada, onde já se viu água parada de todo se não for gelo? Meus humores feito água. Senti na boca um gosto de ferrugem, lambi o dedo por distração depois de deixar a faca na pia, fluxo de água pela torneira aberta, correnteza de emoções e memória. Ele me paga, disse a mim mesmo, ao espelho a face do vexame, desonra na boca dos outros se faz sangue na minha mão.

 

Dora achou poético, não acreditou fosse eu capaz de me sujar assim. Ela beijou a face esquentada, me convidou para a cama, a camisola curta deitava o convite da noite, no escuro todos os gatos são pardos. Preto — eu ouvia ainda aquela afronta batendo feito o tambor do terreiro no meu ouvido. Preto — ele dizia às gargalhadas, exigindo eu fizesse algo como lamber o chão em que pisava, toda aquela estória de limpe minha mesa quantas vezes for preciso, seu preto descia a seco pela goela. Minha faca fez molhada a goela do atrevido. Preço justo.

 

Onde eu estava com a cabeça, Dora gritava ao meu ouvido, eu já nem ouvia mais nada. Preto — era a água escorrendo que me justificava. Preto — não havia prato frio melhor do que aquele acompanhado de vinho, tingindo a boca de satisfação, quente goela abaixo.

 

— Ninguém sabe quem foi, voltou a dizer o filho da velha.

 

— Pior de tudo, deixado apodrecer na mata, aos bichos, disse o terceiro.

 

Pus os dois pés na correnteza, a força era convidativa, tenho algo em mim de rio e não devo negar essa liberdade, agonia. Também as folhas escuras nas árvores saudavam os acordes do vento, incapazes de dormir. Quis mergulhar e me esquecer, mas a voz da velha outra vez cortou o ar com sua lamúria, agonia.

 

— Não sou bruxa, sou santa.

 

Ela era bruxa, eu sabia. Quem muito nega, desconfia. O filho desconfiava, quieto foi na memória separar o joio do trigo, acusando o pai. O outro terceiro, circunspecto até o limite da ebriedade, cada vez mais bebendo silenciava, ponderou finalmente, e eu vi alguma luz no fim do túnel:

 

— O caso todo vai porque és velha, Maria. Ela é nova.

 

— Onde já se viu… O filho, indignado.

 

— Deixe estar, comigo porco não se cria. A terra cava a cova do defunto ingrato.

 

— Porco, mil vezes porco! O filho, revoltado.

 

— São ossos do ofício… ou carne, me entendem? Não ruim de todo, ainda tem a pensão… ninguém além de ti pode pôr a mão na grana. O terceiro ia buscar outra garrafa, satisfeito.

 

— Porco, lama de porco! O filho, bêbado.

 

Era um absurdo ter trazido a faca para a cozinha, gritava a Dora, de camisola. Onde está com a cabeça? É uma pergunta difícil demais. Não tenho nenhum desejo de respondê-la — o amor não se justifica, lembro de haver dito ao pé do ouvido dela, no abraço demorado, debruçado. Em casa, todas as facas são talheres.

 

Segurei meu corpo sobre o limo das pedras do rio, erguido. Um deslize e me acabo aqui, pensei.

 

Eu sentia que a bruxa me olhava, sacudindo as gengivas desdentadas para iniciar um feitiço contra o mundo, um deslize. Enquanto me deixava levar pelas águas, percebi que a velha cantarolava alguma coisa, seu olho debruçado sobre mim. Feitiço — mas já não me importa. Sou água, fluido — não há pior destino que secar.

 

Da boca, escarrei todo o líquido que me dominava, afogando. Eu estava às margens outra vez, o terceiro me segurava pelo braço, o filho pelo outro. A bruxa, soturnamente sorridente, cantarolava ainda. De perto, era ainda mais cruel toda a sua bondade. De perto, ninguém é normal.

 

— Não sou bruxa, sou santa.

 

Dora me pôs na cama, curativo. Todo o peso afundava os lençóis, água de mar. Agonia.

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