O soneto vai muito bem, obrigado | Mathias de Alencar
- Silvio Carneiro
- 3 de jul.
- 11 min de leitura

Sempre fui, e ainda sou, um apaixonado pela estrutura poética dos sonetos. Desde os primeiros jogos de leitura com esses quatorze versos decassílabos (versos de 10 sílabas fonéticas), dispostos em rimas cruzadas ao longo de dois quartetos (estrofes de quatro versos) e outros dois tercetos (de três versos), descobri em mim algo como um desejo de ser poeta, a partir de onde realmente se torna desejável ser poeta — ou seja, para além do mero ímpeto juvenil de querer dizer o que se sente, e só. Tudo bem que, de início, o jogo parece fácil de fazer, mas aos poucos nos damos conta de que, tal como na vida, dizer não é tão simples quanto parece, ainda mais se desejamos produzir arte com isso. Obedecer à forma do soneto é, ao contrário do que parece, descobrir modos sempre novos de expressividade.
Mas as estruturas métricas não limitam nossa expressividade? É o que se costuma ouvir por aí.
O problema está dado na própria pergunta: nossa época, modernista no pior sentido, crê piamente que obedecer regras é perder o melhor do jogo, quando na verdade sem regras nenhum jogo é possível. O melhor da atividade humana se dá exatamente nos processos criativos de aprender a lidar com regras, estabelecendo nuances diferentes a cada jogada. Somos tão inventivos que não raro conseguimos, levando-as ao limite, produzir novas regras, que aperfeiçoam e tornam obsoletas formas equivocadas ou já não eficientes na produção de sentido. É diferente dos que simplesmente se recusam a aprender o que foi estabelecido, por inépcia, desgosto ou pressupostos políticos (em arte, qualquer desses casos é um problema). Para esses, a sabedoria popular aconselha: quem não sabe jogar, não desce pro play.
Antes de tudo, aprendi com os portugueses — em especial, com Maria Du Bocage, meu primeiro grande mestre em poesia. Seu livro de sonetos, que me caiu nas mãos quando eu me aventurava pelas letras, um tanto tardiamente, por volta dos dezoito anos, me foi das melhores formas de companhia, aquelas que ensinam e divertem ao mesmo tempo em que se estabelecem na alma como uma espécie de modelo do que significa, afinal de contas, ser alguém de valor. Todo valor que me imaginei como poeta estava em dizer como Bocage dizia sobre si mesmo e sobre o amor.
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;
Eis Bocage em quem luz algum talento
;Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Os tercetos finais desse seu conhecido soneto autodescritivo sempre me fascinaram, fosse pelo tom esnobe com que o poeta se ridiculariza, fosse pela sagacidade na construção dos versos, em decassílabos primorosos. Exceto pela intensidade do ritmo e pela sagacidade sensualista dos demais sonetos, estive quase completamente traduzido por esse outro terceto, também de um soneto autodescritivo tão ao gosto de Bocage.
E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,
Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.
Através de Bocage, conheci Camões e Antero de Quental, até me descobrir, aqui e ali, lendo algo de Petrarca, este que é a referência maior desse modelo métrico, por haver popularizado sua forma a partir do século XIV. Estamos falando, é bom que se diga, de uma estrutura poética eminentemente moderna, fruto de uma Renascença que dá forma àquilo que os trovadores provençais pareciam cantar espontaneamente através daquelas suas pequenas canções, chamadas de sonnet ou son d’amour, mas que estavam ainda distantes da forma desenvolvida que seria a do sonnetto italiano.
Um traço fundamental da modernidade no soneto aparece em seu esforço racional de elaborar, pela disposição das estrofes, uma espécie de argumento cuja intenção potencializa a sonoridade obtida pelas rimas e pelo ritmo métrico, como se o silogismo aristotélico (e escolástico) abrisse espaço para uma lógica sensível e intuitiva, como se a arte fosse a herdeira legítima da sabedoria clássica. Na lógica do modelo poético dos sonetos, os primeiros quartetos apresentam e desenvolvem um tema, como fossem as premissas das quais os tercetos se tornam uma conclusão inesperada da cena ou do dilema, uma reviravolta que muitas vezes surpreende o leitor, até o seu desfecho final no último verso, chamado de “chave de ouro”. Ou, na provocação de Théophile Gautier: "se o veneno do escorpião está localizado na cauda, o mérito do soneto reside no último verso".
Para servir de exemplo, ninguém melhor do que Camões. Repare a suave ruptura entre o saudosismo do poeta na primeira parte (os dois quartetos), quase jogando com uma resignação impossível de curar, e o desespero da última parte (os dois tercetos), em que o poeta se ressente em continuar vivo sem a amada, fazendo da posição santa que ela assume uma chave do perdão pelo desejo de morte que o domina.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te;
Roga a Deus que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Vale a pena reler esse soneto outras duas vezes, ainda melhor se for em voz alta, e perceber a incrível musicalidade com que Camões provocava à potência nosso idioma, sob a inspiração de Petrarca. Vale lembrar que, ao lermos poesia, é importante conferir uma pausa especial ao final dos versos, o que ajuda não só a destacar rimas e sílabas tônicas, mas a conferir também unidade para o sentido que cada verso constrói. Isso tende a se perder em nosso tempo, quando poetas se valem de uma lógica cada vez mais prosaica, e literal.
Outro mestre na arte foi Shakespeare, de tal modo imprimindo sua maneira de dizer a esse jogo que acabou por popularizar a forma inglesa do soneto — composta então de três quartetos com rimas diversas e uma rima final num dístico (estrofe de dois versos), também conhecido como parelha. Para os mais puristas, o soneto inglês ou shakespeariano não é soneto absolutamente. Para nós, que não precisamos de purismos, a inventividade no processo de lidar com as formas rende homenagem ao modelo mais tradicional ou clássico. Acredito, inclusive, que seja a extrema variedade dos jogos possíveis com a forma original que torna o soneto tão vigoroso ainda hoje.
Jogos que seguem desde uma devoção à musa inacessível até um sarcasmo frente aos poderosos.
Vejam, por exemplo, os casos recentes dos livros Sonetos de amor e sacanagem, de Gregório Duvivier e Engenheiro Fantasma, de Fabrício Corsaletti —este último, tendo recebido os prêmios Jabuti de melhor livro do ano e melhor livro de poesia em 2023. Cada um a seu modo joga com os limites da forma do soneto de modo a potencializar, pelo ritmo e o tom elevado que ele ecoa, o modo de dizer coisas nem sempre tão elevadas assim. É o caso de Duvivier neste belo soneto.
Soneto fático
Repare nas pessoas conversando:
não é um bate-papo, é uma luta.
Todos querem pra si o olhar do bando.
Ninguém se entende nem sequer se escuta.
Pode até parecer civilizado,
mas se olhar com cuidado e lucidez
vai perceber que quem está calado
só espera chegar a sua vez.
Fale merda que alguém no mesmo instante
dirá uma merda mais irrelevante
que não tem nada a ver com a merda acima.
Falar só serve pra fazer barulho.
Esse poema, mesmo, é um entulho.
Não muda nada — mas ao menos rima.
A sagacidade aqui rende homenagem à tradição: ao ironizar no verso de ouro ao final a quase completa inutilidade do poema diante da incapacidade moderna de ouvir o outro, o que faz da poesia simples adorno civilizado para uma atitude desumana, Duvivier calibra sua crítica pela denúncia desta em vez de desprezar aquela. É o que fazemos abaixo da linha do Equador, desde Gregório de Matos, o príncipe dos sonetistas.
No caso de Corsaletti, seu livro é construído sob uma premissa inusitada. Em um sonho, o autor se surpreende ao encontrar o verdadeiro Bob Dylan, que vive uma vida pacata em Buenos Aires, enquanto todos conhecem o seu duplo mais famoso. Tendo fugido dos EUA há trinta anos, Dylan conquistou a admiração dos portenhos não como letrista, mas por um exemplar com 200 sonetos de versos ambientados em sua vivência das ruas de Buenos Aires.
Corsaletti compôs, ao acordar, 56 desses sonetos. Se os outros foram perdidos em meio à névoa onírica, os que lemos trazem verdadeiros achados poéticos, sobretudo no modo com que, me parece, a força da umidade de sentido do verso configura o melhor traço da poética do seu autor. Eis como essa aventura tem início, para nós leitores.
I
o céu azul e as avenidas planas
ladeadas de prédios com balcones
a música de los acordeones
e a confusão latino-americana
tive problemas logo na aduana
eu levo a vida dentro de um ciclone
um tira confiscou meu telefone
e a garrafa de grappa italiana
em Buenos Aires nada decepciona
velhos cafés onde cantou Gardel
e vinho feito da água das geleiras
acho que te esqueci em Barcelona
junto com minhas tintas e um pincel
eu vou cruzar a última fronteira
A força da composição de Corsaletti aqui se encontra na bela capacidade, que muito admiro e também pratico, de entender o verso como unidade básica de sentido do poema, de modo que ao final o soneto se torna um mosaico evocativo de impressões e sugestões estéticas — fragmentadas mas jamais desconexas. A atmosfera de transe e delírio em Engenheiro Fantasma é, com isso, potencializada ao limite do que lhe permite sua premissa, e toda sua paixão para emular Dylan ao sabor latino-americano.
Nada desse vigor em dizer banalidades e delírios através do soneto, aqui e ali trazendo o cotidiano e suas diatribes para o elevado da forma, surpreende quem tenha lido Bocage ou Gregório de Matos, ou mesmo quem tenha conhecido a verve polêmica de Bruno Tolentino, sem dúvidas um de nossos maiores sonetistas. Em afrontosa crítica aos irmãos Campos depois de seu retorno ao Brasil, nos anos noventa, contra o que para ele significava uma degradação da poesia no interesse concretista de louvar cancionistas como modelos e letras de música como poemas, Tolentino compôs diversos jogos de sonetos satíricos, debochando do esnobismo de seus desafetos em Os sapos de ontem, um pequeno grande inventário de sua língua ferina, do qual pincelamos os versos abaixo.
À penteadeira
Convido-te, leitor, a alguns exemplos
do que do morto o vivaldino abriga
em seu dourado acervo dos bons tempos;
parece até mentira, mas prossiga,
leia da sapórreia a lira antiga,
como se dava a ler naqueles tempos
em que o rei lhes crescia na barriga:
à penteadeira se espelhavam templos,
os glaromas de amil morigerantes
multiplicavam rosas coruscantes,
as guirlandas cresciam entre as canetas
e embasbacavam tanto os três patetas,
que escorriam a rodo das estantes
e ornavam d’oiro os pálidos estetas...
Sem dúvidas, foi esta sua boca do inferno que acabou por desviar a atenção, dos raros leitores de poesia, para o que realmente importava louvar em Tolentino: a sua incrível capacidade de versejar. Repare na liberdade das rimas, que dá o ar da graça e do deboche sem perder a elevação da forma. Quem conheça a poesia do Bruno apenas por sua polêmica, no entanto, não conhece absolutamente o Bruno. Se a estratégia foi válida para chamar a atenção do público para si, não creio ter sido ela a melhor forma de se fazer ouvir em poesia. O grito afasta em poesia mais do que atrai.
Há indícios de que o próprio Tolentino, ao fim da vida, reconheceu haver assumido para si polêmicas desnecessárias, impedindo ou fazendo demorar mais do que deveria seu reconhecimento na literatura brasileira, que se enriquece pelos monumentos literários que são O mundo como ideia e A imitação do amanhecer. Este último, o livro derradeiro de Tolentino (agraciado com o prêmio Jabuti in memoriam), é talvez a maior das obras-primas, entre nós, no que diz respeito a uma poética do soneto. Composto por impressionantes 538 sonetos alexandrinos (com versos de doze sílabas) ao longo de 26 anos, o livro nos conta os movimentos de um amor vivido em Alexandria, inspirado pela dialética da presença/ausência como linguagem do tempo.
Deixo abaixo um pequeno exemplar dessa obra.
I. 8
Amei Alexandria apaixonadamente.
Foi naquela cidade que amei como ninguém,
como se ama a verdade e a ilusão quando vêm
a dar quase no mesmo: um coração consente
qualquer ambigüidade à alma quando tem,
como se diz, a vida toda pela frente…
À mais notória condição inconseqüente
que um jovem coração cultiva, eu dei também
como o barco à deriva, a quilha sempre pronta
ao naufrágio ideal… Mas não foi à cidade
que eu aportei um dia, a jovem alma tonta,
o corpo amado ao lado: foi àquela metade
do eterno compartido, a jóia da vaidade,
doce como um colar de dois, conta por conta…
Em A imitação do amanhecer, Tolentino doira (falemos como ele) sua estética, e toda nossa possibilidade de experimentá-la, com a sublimidade de um versejar que joga, o tempo todo, com o enjambement (antes algo mal-visto em poesia), ao construir unidade estendendo o sentido para os próximos versos, às vezes mesmo para outra estrofe, como ao final do segundo quarteto e início do terceto. Acredito que o Bruno, contudo, por meio dessa técnica, produz uma ambiguidade viciosa, no bom sentido da palavra, porque sedutora ao explorador que gosta de mergulho em águas profundas. Ou seja, ela ao mesmo tempo recupera a unidade maior de sentido a partir da fluidez da leitura enquanto sugere a possibilidade de encontrar novos sentidos se os versos forem lidos isoladamente, como uma unidade em si. Vejam o caso, por exemplo, destes versos:
…que sabes do fenômeno de que aqui falo? O amor
para ti alguma vez foi susto? Entre o terror
e o maravilhamento algum dia o retrato
da perfeição te olhou? Vá lá, vamos supor…
Fica claro que o primeiro verso termina com o sujeito da pergunta contida no segundo verso. Mas se lermos os dois versos em sua unidade, não só reforçamos, no primeiro, o amor como resposta ao fenômeno de que ele fala, como também sentimos com mais intensidade a atmosfera pavorosa sobre a qual ele indaga seu leitor, no segundo. Percebam, também, que o terceiro verso parece essencialmente incompleto, já que ele obtém seu sentido a partir da relação com o segundo e o quarto versos. Será mesmo, porém, que nenhuma unidade de sentido é possível destacar neste terceiro verso, considerado em si? Deixo a resposta com vocês…
Como poeta, gosto de pensar que o soneto me oferece a mesma experiência de criação que um oleiro encontra nos limites que o barro impõe à modelagem. Em meu livro Ninguém há de doar-se a dois amores ou Julieta, publicado pela editora Folheando, faço largo uso dos sonetos, enquanto recrio as cenas do amor impossível entre Romualdo e sua pequena Júlia. No meu novo livro, Pá-lavra, em pré-venda numa bela edição pela editora Mondru, abri mão de usá-los para me aventurar em uma outra proposta de manufatura do verso e da palavra. Isso não significa que o soneto não esteja presente.
Na verdade, sinto ser impossível evitá-lo de todo. Essa paixão pela forma aparece no livro em três sonetos, um deles alexandrino, dito de reparação para sugerir também modos de se pensar a presença pela ausência, na estrutura de quatorze versos que modelam outros poemas do livro. Ao finalizar o projeto de Pá-lavra, no entanto, não pude abrir mão de iniciar a leitura do livro exatamente com um soneto debochado, ressoando algo de toda essa minha travessia na companhia de mestres sonetistas, quando então de algum modo faço marcar meu passo pela riqueza obtida nesta inesgotável travessia. Deixo o soneto de abertura abaixo, também como um convite para que vocês conheçam esse meu novo projeto.
Ao leitor
Você que aqui caiu de paraquedas
como quem abre um livro e espera a sorte
não ter gastado em vão suas moedas
sugiro: não espere o que conforte.
Se ainda assim insiste em ter na mão
lê duas ou três folhas, já não gosta
devolve à prateleira, dou razão
mais vale o tiktok que essa bosta.
Ainda aqui? Já vi, devo-lhe um corte:
poema é artesanato, é construção
palavra não diz só amor e morte;
não diga não avisei minha proposta
se achar algo profundo qual os Vedas
vai ver é só impressão de dor nas costas.
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