A Bolsa Amarela: Desejos, identidade e resistência no universo infanto-juvenil | J. Machado
- Silvio Carneiro
- 25 de jun.
- 3 min de leitura

A escritora Lygia Bojunga Nunes nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 26 de agosto de 1932. Formada em artes cênicas, atuou como atriz de teatro e rádio antes de dedicar-se inteiramente à literatura. É uma das maiores autoras da literatura infantojuvenil brasileira, tendo publicado mais de vinte obras. Entre elas destacam-se Os colegas (1972), Angélica (1975) e A Bolsa Amarela (1976). Esta última lançada pela editora José Olympio e posteriormente reeditada pela Editora Agir. Assim, consolidou seu estilo literário, que mistura crítica social, fantasia e linguagem sensível.
Na obra A Bolsa Amarela, a protagonista Raquel apresenta três grandes vontades: a de crescer, a de ter nascido menino e a de ser escritora. Esses desejos, aparentemente pessoais e infantis, revelam camadas profundas de crítica social. A vontade de crescer representa o anseio por autonomia e reconhecimento em um ambiente familiar repressivo, em que a infância é desvalorizada. O desejo de ser menino escancara as desigualdades de gênero que limitam as possibilidades de ação das meninas. Por fim, o desejo de ser escritora revela o impulso criador e a necessidade de expressar-se em um meio que desvaloriza suas ideias e sentimentos. Bojunga, por meio dessas vontades, critica estruturas sociais engessadas que oprimem a infância e a feminilidade.
A bolsa amarela, presente no título e no enredo, adquire valor simbólico central na narrativa. Inicialmente desprezada pelos adultos, ela é apropriada por Raquel como espaço de abrigo para suas vontades reprimidas. A bolsa torna-se uma extensão do seu ‘eu’ mais íntimo. Por meio desse objeto, a personagem constrói e afirma sua identidade em um processo de resistência e imaginação que desafia os limites impostos pelo mundo adulto.
A fantasia desempenha papel fundamental na construção da crítica social e emocional da obra. Um dos elementos mais marcantes é a personificação do galo Rei, personagem criado por Raquel em um de seus romances inventados. O galo, que deseja fugir do galinheiro para conquistar sua liberdade, simboliza o próprio desejo da menina por emancipação. A fantasia, longe de ser um mero recurso escapista, torna-se meio de compreensão da realidade e de enfrentamento das opressões cotidianas.
A Bolsa Amarela foi publicada em 1976, durante o regime militar brasileiro, período marcado por censura e repressão. Embora voltado ao público infantil, o livro pode ser lido como uma resposta sutil às limitações de expressão impostas pela ditadura. A repressão vivida por Raquel dentro de casa espelha, em microescala, o autoritarismo político da época. A linguagem indireta, as metáforas e o uso de elementos fantásticos permitiram à autora driblar a censura e promover uma reflexão crítica sobre temas como liberdade, desigualdade e silenciamento.
Ao final da narrativa, Raquel passa por uma transformação significativa. Ela aprende a aceitar suas vontades, valoriza sua imaginação e reconhece a legitimidade de seus sentimentos. Ainda que não realize concretamente todos os seus desejos, ela alcança um novo estágio de consciência e afirmação. Ao se tornar autora de sua própria história, Raquel deixa de se esconder e conquista um lugar simbólico no mundo. Seu crescimento é subjetivo e interior, revelando uma maturidade que transcende a idade biológica.
A ironia e o humor são estratégias recorrentes em A Bolsa Amarela. Bojunga utiliza esses recursos para tratar temas sérios como a repressão familiar e o machismo sem tornar a leitura excessivamente pesada. Através do olhar crítico e bem-humorado de Raquel, o leitor é convidado a refletir sobre absurdos cotidianos naturalizados, como o controle da fala das crianças ou a ideia de que meninas devem apenas se comportar. A ironia funciona como ferramenta de resistência e subversão do discurso adulto dominante.
Minha experiência de leitura com A Bolsa Amarela foi marcante. Como educador em formação e leitor, percebo que a obra ainda ecoa nos desafios enfrentados pelas crianças de hoje. A escrita de Bojunga me tocou pela sua honestidade emocional e pelo modo como dá voz a quem raramente é ouvido. Ler A Bolsa Amarela é reencontrar a criança dentro de nós — com seus medos, suas vontades e, acima de tudo, sua esperança.
Referências
BOJUNGA, Lygia. A Bolsa Amarela. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1993.
ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária. São Paulo: Ática, 1994.
LARANJEIRA, Jéssika Vales. Perspectivas sociais da criança em A Bolsa Amarela: o leitor sob a ótica da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito. Belém – PA: Universidade do Estado do Pará, 2015.
ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Global, 1989.
J. Machado é o pseudônimo literário de Jardel Machado de Sousa, escritor, poeta e educador infantil. Técnico em enfermagem, estudante de Letras pela Universidade do Estado do Amapá, dedica-se à criação de contos, poesias e projetos voltados à literatura infanto-juvenil. Com sensibilidade e imaginação, escreve para despertar valores humanos e o encantamento pela linguagem.





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