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A Bolsa Amarela: Desejos, identidade e resistĂȘncia no universo infanto-juvenil | J. Machado

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • 25 de jun.
  • 3 min de leitura


Foto: Jeniffer Yara (2024)
Foto: Jeniffer Yara (2024)

A escritora Lygia Bojunga Nunes nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 26 de agosto de 1932. Formada em artes cĂȘnicas, atuou como atriz de teatro e rĂĄdio antes de dedicar-se inteiramente Ă  literatura. É uma das maiores autoras da literatura infantojuvenil brasileira, tendo publicado mais de vinte obras. Entre elas destacam-se Os colegas (1972), AngĂ©lica (1975) e A Bolsa Amarela (1976). Esta Ășltima lançada pela editora JosĂ© Olympio e posteriormente reeditada pela Editora Agir. Assim, consolidou seu estilo literĂĄrio, que mistura crĂ­tica social, fantasia e linguagem sensĂ­vel.

Na obra A Bolsa Amarela, a protagonista Raquel apresenta trĂȘs grandes vontades: a de crescer, a de ter nascido menino e a de ser escritora. Esses desejos, aparentemente pessoais e infantis, revelam camadas profundas de crĂ­tica social. A vontade de crescer representa o anseio por autonomia e reconhecimento em um ambiente familiar repressivo, em que a infĂąncia Ă© desvalorizada. O desejo de ser menino escancara as desigualdades de gĂȘnero que limitam as possibilidades de ação das meninas. Por fim, o desejo de ser escritora revela o impulso criador e a necessidade de expressar-se em um meio que desvaloriza suas ideias e sentimentos. Bojunga, por meio dessas vontades, critica estruturas sociais engessadas que oprimem a infĂąncia e a feminilidade.

A bolsa amarela, presente no tĂ­tulo e no enredo, adquire valor simbĂłlico central na narrativa. Inicialmente desprezada pelos adultos, ela Ă© apropriada por Raquel como espaço de abrigo para suas vontades reprimidas. A bolsa torna-se uma extensĂŁo do seu ‘eu’ mais Ă­ntimo. Por meio desse objeto, a personagem constrĂłi e afirma sua identidade em um processo de resistĂȘncia e imaginação que desafia os limites impostos pelo mundo adulto.

A fantasia desempenha papel fundamental na construção da crítica social e emocional da obra. Um dos elementos mais marcantes é a personificação do galo Rei, personagem criado por Raquel em um de seus romances inventados. O galo, que deseja fugir do galinheiro para conquistar sua liberdade, simboliza o próprio desejo da menina por emancipação. A fantasia, longe de ser um mero recurso escapista, torna-se meio de compreensão da realidade e de enfrentamento das opressÔes cotidianas.

A Bolsa Amarela foi publicada em 1976, durante o regime militar brasileiro, perĂ­odo marcado por censura e repressĂŁo. Embora voltado ao pĂșblico infantil, o livro pode ser lido como uma resposta sutil Ă s limitaçÔes de expressĂŁo impostas pela ditadura. A repressĂŁo vivida por Raquel dentro de casa espelha, em microescala, o autoritarismo polĂ­tico da Ă©poca. A linguagem indireta, as metĂĄforas e o uso de elementos fantĂĄsticos permitiram Ă  autora driblar a censura e promover uma reflexĂŁo crĂ­tica sobre temas como liberdade, desigualdade e silenciamento.

Ao final da narrativa, Raquel passa por uma transformação significativa. Ela aprende a aceitar suas vontades, valoriza sua imaginação e reconhece a legitimidade de seus sentimentos. Ainda que nĂŁo realize concretamente todos os seus desejos, ela alcança um novo estĂĄgio de consciĂȘncia e afirmação. Ao se tornar autora de sua prĂłpria histĂłria, Raquel deixa de se esconder e conquista um lugar simbĂłlico no mundo. Seu crescimento Ă© subjetivo e interior, revelando uma maturidade que transcende a idade biolĂłgica.

A ironia e o humor sĂŁo estratĂ©gias recorrentes em A Bolsa Amarela. Bojunga utiliza esses recursos para tratar temas sĂ©rios como a repressĂŁo familiar e o machismo sem tornar a leitura excessivamente pesada. AtravĂ©s do olhar crĂ­tico e bem-humorado de Raquel, o leitor Ă© convidado a refletir sobre absurdos cotidianos naturalizados, como o controle da fala das crianças ou a ideia de que meninas devem apenas se comportar. A ironia funciona como ferramenta de resistĂȘncia e subversĂŁo do discurso adulto dominante.

Minha experiĂȘncia de leitura com A Bolsa Amarela foi marcante. Como educador em formação e leitor, percebo que a obra ainda ecoa nos desafios enfrentados pelas crianças de hoje. A escrita de Bojunga me tocou pela sua honestidade emocional e pelo modo como dĂĄ voz a quem raramente Ă© ouvido. Ler A Bolsa Amarela é reencontrar a criança dentro de nĂłs — com seus medos, suas vontades e, acima de tudo, sua esperança.

 

ReferĂȘncias

BOJUNGA, Lygia. A Bolsa Amarela. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1993.

ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996.

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literåria. São Paulo: Ática, 1994.

LARANJEIRA, JĂ©ssika Vales. Perspectivas sociais da criança em A Bolsa Amarela: o leitor sob a Ăłtica da EstĂ©tica da Recepção e da Teoria do Efeito. BelĂ©m – PA: Universidade do Estado do ParĂĄ, 2015.

ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. SĂŁo Paulo: Global, 1989.

 


J. Machado é o pseudÎnimo literårio de Jardel Machado de Sousa, escritor, poeta e educador infantil. Técnico em enfermagem, estudante de Letras pela Universidade do Estado do Amapå, dedica-se à criação de contos, poesias e projetos voltados à literatura infanto-juvenil. Com sensibilidade e imaginação, escreve para despertar valores humanos e o encantamento pela linguagem.

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