Quem tem medo da poesia? [1] | Mathias de Alencar
- Silvio Carneiro
- 3 de mai.
- 6 min de leitura

Já conversamos algumas vezes por aqui sobre a condição da poesia, seu dilema não só para a crítica, mas sobretudo para o leitor comum. Para que ler poesia? — Eis a pergunta que retorna sempre, e à qual tentam oferecer respostas os mais diversos intelectuais, como recentemente ocorreu em Lisboa. Eis, sobretudo, a pergunta que se faz todo leigo ou iniciante, que não entende muito bem por que uns escrevem sonetos e redondilhas (naturalmente sem ainda saber que assim nomeamos certos poemas), enquanto outros diz-põem (me aproprio com gosto dessa palavra da filósofa B. Cassin, em diálogo com Lacan) as palavras numa espécie de fluxo, sem vírgulas nem maiúsculas, desenhadas no papel a bel-prazer, aqui e ali ensaiando poéticas que anseiam pelo olhar atento de um leitor cada vez mais confuso.
Sempre ouço falarem dessa confusão com a evidente quebra das regras gramaticais, com a subversão da significação originária ou mais comum das palavras, em seu dizer cotidiano, além do fato de o poeta parecer mesmo gozar criando espectros oníricos como fossem realidade, e que mais denunciam sobre ele mesmo do que tais imagens possam servir para algum leitor se identificar com elas. O que se está querendo, afinal, dizer em poesia? A pergunta é legítima, e talvez seja interessante voltarmos a dizer, aos interessados, como se faz para ler, e sobretudo entender, essa que é a maior das artes literárias. Se eu for feliz no que planejo, essa reflexão nos dirá também alguma coisa sobre como escrever poesia, além de traçar alguns esboços críticos sobre o tipo de poesia praticado em nossa época.
O literário de um texto
Se a literatura é feita de textos, nem todo texto é literário. Essa constatação é importante, porque boa parte dos meios de que dispomos para avaliar um livro ocorrem a partir do que se entende como o literário de um texto. A qualidade do literário, um problema dificilmente resolvido com unanimidade (veja, por exemplo, o recente estudo do grande Terry Eagleton, em seu O acontecimento da literatura), deve ser encontrado (resumo aqui ironicamente as especulações de Terry) em propriedades textuais que reputamos como tais — reputamos quem? Nós escritores, mas também nós, leitores.
Parece um círculo vicioso, e às vezes toda teoria literária não passa de uma Ouroboros (a cobra que morde a própria cauda). Há porém, formas de se escapar desse eterno retorno do mesmo, ao menos se estamos dispostos a assumir que bulas de remédio ou letreiros de propaganda não fazem parte da prosa literária, nem da poesia. E se de fato assumimos essa impossibilidade, é porque há algo na literatura que escapa a essa redução ao banal, à utilidade imediata, ao interesse meramente comercial. Há algo que parece mesmo escapar, na literatura, a qualquer definição mais precisa, que consiga enquadrar todos os elementos que observamos em livros literários, mas que não são todos necessários para fazer de um livro uma literatura.
Para tentarmos uma definição (e aqui sou grato por ter conhecido as reflexões de Shoshana Felman, nas fronteiras entre psicanálise, filosofia e literatura), podemos dizer que o literário está na qualidade com que um texto produz uma experiência estética de totalidade, na força centrípeta de condensar significados cujo efeito torna o texto, mesmo em seu necessário porque inevitável diálogo com outras artes e obras, impossível de ser reduzido a outro texto. Ou seja, há algo no texto literário que impede, ou pelo menos torna desnecessária, qualquer referência para fora dele, como se aquele mundo de palavras tivesse em si mesmo tudo o que se faz preciso para torná-lo esteticamente único. E por isso mesmo, o literário no texto resiste à possibilidade de interpretação, ao menos se entendemos esta como unívoca e verdadeira. A sensação que temos é a de faltar palavras para explicar tudo o que o texto provoca.
Não quero dizer, com isso, que o texto literário nada refira ao mundo como o sabemos pelo toque dos dedos; quero dizer, antes, que é a obra literária que nos permite ouvir o mundo, e não o mundo que chega a nos dizer algo sobre a obra. Não quero dizer também que todo texto que se pretenda literário consiga realizar de maneira satisfatória essa qualidade — e exatamente por não consegui-lo que se viabiliza a possibilidade, e a necessidade, da crítica literária, enquanto atividade dedicada a produzir, em vez de um comentário exaustivo das obras, uma avaliação comparativa daquelas que melhor se aproximam do fenômeno estético desejado. A crítica é, assim, uma arte da leitura.
É fácil constatar, portanto, que sem uma proposta de definição do que seja o literário a crítica não é possível. E sem a crítica literária, perdemos o interesse pela qualidade das obras, cujo efeito, a longo prazo, é mesmo a perda do literário, como experiência estética com a linguagem. Não se trata, hoje menos ainda, de engessar a imaginação e a artesania literária com juízos de gosto e de valor estranhos à arte. Trata-se, antes de tudo, de potencializar a autonomia da obra literária, destacando em sua poética sua força interna, de modo a situá-la numa intencionalidade geracional (seja no sentido de geração em geração, seja no sentido de criação como diálogo com outras formas de criar) a que chamamos de tradição literária.
Dito isso, pretendo apresentar a poesia (obviamente, não serei o único) enquanto arte por excelência da qualidade do literário em sua forma originária, embrionária mas também revolucionária — de modo que nossa abordagem quanto à poesia servirá para esclarecer aspectos da vivacidade literária também em prosa, sua irmã mais nova.
2. De onde vem a poesia?
Dispus num texto anterior o que entendo ser de fato o fazer poético. Recomendo a leitura para os que realmente estão interessados em entender do que é que estamos falando. Como sei que nem todos se darão a esse trabalho, reproduzo o trecho que melhor define o que penso sobre uma boa caracterização da poesia.
A palavra poesia procede do verbo grego poiein, que significa fazer, no sentido de produzir algo. As artes poéticas são produtoras, e como arte, seu produto tem a qualidade do artista, entendido como artesão, como aquele que elabora, desde certos materiais, um algo outro dotado de utilidade e de significado. Esse produto, essa obra realizada, é fruto então de uma ação humana. A poesia, como a entendemos desde então, é um tipo dessas artes, aquela que produz sobre nós um efeito específico a partir da reprodução de ações humanas. O produto da poesia é, portanto, o modo desse acontecimento artístico, aquele em que ações humanas são representadas para provocar no espectador/leitor a experiência, a vivência simbólica de espelho à qual os gregos davam o nome de mimética.
Há na composição de versos, então, um traço de artesania, de manufatura, de olaria, e há também um traço de intencionalidade, destacado pela maneira com que se provoca o espectador/leitor a uma experiência estética com a linguagem. Para obter esse efeito, a palavra poética aponta para si mesma antes de tudo, “denotando-se no ato de denotar [de referir-se a] outra coisa”, na bela síntese de Eagleton. Ela aponta, portanto, ao ato mesmo de dizer, em sua intenção de significar, tal como Hesíodo, o poeta que primeiro nos descreve essa intencionalidade, diz sobre si mesmo.
Elas [as Musas] um dia a Hesíodo ensinaram belo canto… inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado, impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por último sempre cantar. (Teogonia. trad. JAA Torrano)
O poeta é um artesão da linguagem disposta enquanto um belo canto (qualidade estética) que, ao dizer sobre o que há de mais elevado ao humano (ou seja, seu passado e seu futuro glorioso), diz sobre a eternidade dos próprios seres a quem esses atos honram (e com isso, dispõe o divino como parâmetro de valor das ações humanas). O que quase sempre chama a atenção dos leitores de Hesíodo, aqui, está na forma pela qual o poeta, em seu canto, canta o próprio fazer poético, inspirado pelas Musas eternas, como uma ação sempre digna de ser lembrada. Ao cantar as Musas, primeiro e por último sempre, o poeta canta sua arte, sua ação de artista, a glória de um fazer que não deveria ser jamais esquecido ou desprezado, e que ratifica o valor do seu canto a cada vez que canta.
Nesse sentido, a melhor maneira de conhecer o que fazem os poetas é ouvi-los em seu modo de dizer, seja pelo que dizem, seja pelo que calam. A maneira pela qual Murilo Mendes define sua arte pode nos servir de guia: “se o texto a interpretar é o mundo e o meio cognoscitivo, a linguagem, o ofício do poeta é fazer-se contemporâneo de todo acontecimento”. Fazer-se contemporâneo de todo acontecimento. Se Hesíodo aponta o canto poético como louvor ao futuro e ao passado, louvar é sempre estar presente ao momento do canto, é repetir a ação ou o acontecimento louvados como se ocorressem agora mesmo, durante a composição, também durante a leitura.
Estar todo presente no que presente se canta: se isso pode definir o poeta, pode bem definir também o leitor de poesia.
[Continuamos mês que vem]
Comments