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Foto do escritorSilvio Carneiro

Outubro | Ori Fonseca

Foto: Arquivo O Liberal

 

 

Outubro nem sempre foi assim. Não fosse o Círio e o feriado do Dia das Crianças (muita gente não se dava conta de que havia uma padroeira do país responsável pelo feriado), outubro era um mês meio sem graça. Eu nasci em setembro, no dia 22, dia em que geralmente inicia a primavera para quem vive no lado debaixo do Equador. E eu pensava: “como pode ser setembro, uma palavra que se refere claramente ao número sete, o que nomeia o nono mês do ano?”. Com outubro, então, a confusão era ainda maior, já que os outros meses que carregam números em seus nomes, embora dissonantes com suas sequências no ano, apresentavam certa coerência entre o nome e o número. SETembro é de SETe, NOVembro é de NOVe, DEZembro é de DEZ. Mas outubro, que deveria se chamar OITembro, foge da lógica linguística. Eu imaginava que poderia se chamar pelo menos OITubro, e o sufixo EMBRO que se danasse. Depois, eu quis encontrar lógica no revezamento que as letras I e U compartilham certos vocábulos como COISA e COUSA, DOIDO e DOUDO, LOURO e LOIRO... Talvez eu tenha feito este exercício todo para dar alguma importância para o mês.


Estas reflexões acerca do tempo, e de alguns lugares, coisas de desocupado mental, faziam-me repensar até a validade de uma estação do ano: outono (seria algum preconceito com o OUT de outubro?). Eu nunca vi outono chegar nem ir embora. A primavera não, a primavera nasce comigo e, diferentemente do que ocorre na natureza, vem depois do verão e antes do inverno. Ou era assim até eu mudar para a Paraíba. Eu não sabia onde situar o outono, havia uma confusão de achá-lo no tempo, como havia para achar Sergipe ou o Espírito Santo no mapa. Da mesma forma que parava um pouco para pensar antes de concluir qual era o estado e qual era a capital quando me referia ao Amapá e a Macapá. Confusão maior era quando me vinha a dúvida se Roraima era a capital de Rondônia ou vice-versa. Levou um tempo para eu assimilar que um lugar não tem nada a ver com o outro, pelo menos na relação estado / capital. O problema passou a ser fazer a correspondência correta de Porto Velho e Boa Vista com seus territórios federais. No Sistema Solar, o alvo de minha ignorância era Plutão. Eu não entendia como um planeta pudesse ser tão não-planeta. Depois, os astrônomos deram um alento ao meu estado ignorante e rebaixaram Plutão à categoria de planeta anão. Bem feito!


Mas outubro assoma diferente nestes tempos. Ainda há o Círio, não tem como não haver; ainda há o feriado do Dia das Crianças (para quem tem Nossa Senhora de Nazaré, a Aparecida soa redundante), ainda há a primavera deslocada, como se ela só existisse em setembro. Mas há fatos e sentimentos novos. Sentimentos dos quais falarei adiante e fatos que chegam por meio dos jornais que não têm folhas. Isso me faz lembrar que em uma noite de sábado de outubro, véspera do Círio de Nazaré fui com meu pai e dois irmãos pernoitar na calçada do prédio que onde ficava a gráfica do jornal O Liberal, na Rua Gaspar Viana, em Belém. Meu pai era jornaleiro e, de domingo a domingo, saía para vender seus jornais em um ponto fixo de uma calçada na Praça do Pescador, na Boulevard Castilho França. Essa rotina só era quebrada no domingo do Círio, quando meu pai fazia sua venda na Praça da República. As vendas costumavam ser boas nesse dia, pois os jornais sempre traziam a Santa na capa e um encarte especial com sua imagem dentro, tradição que sobrevive a duras penas, pois jornais impressos são cada vez mais raros neste mundo de nuvens digitais. Meu amigo Raimundo Sodré, esse sim um cronista de verdade, confirmou-me a onipresença da Santa nas capas do segundo domingo de outubro. Sodré, aliás, republica todo ano uma crônica bela sobre sua relação com a Nazaré (https://pedreirajazzpedranoventa.blogspot.com/2013/10/cronica-remix-eu-erapequeno.html), então eu a leio novamente. E naquele domingo abençoado, quando a Santa passava pela Praça da República, os jornais se esgotaram, e meus irmãos, que passaram a manhã estourando a garganta gritando o nome dos jornais (“OLHA O LIBERAL! OLHA A PROVÍNCIA! OLHA O DIÁRIO!), com uma voz estranhamente masculinizada, de um grave ausente na conversação normal, podiam voltar a ser crianças e correr um atrás do outro sem ligar para Santa que por ali passava. É dessa imagem que emanou trecho de uma canção que compus mais tarde e que foi vencedora do Festival da Canção de Santarém muito pela bela voz do meu amigo José Maria Pinto Cruz, um aniversariante de outubro.


Crianças que em dia

Estouram garganta

Que cansam correndo ao redor de uma Santa

Uma santa agonia

Sem guia e sem Deus.


Meus dois irmãos já ajudavam meu pai com alguma frequência. Eu me voluntariei naquele dia. Naquela noite. Lembro-me do barulho das prensas velozes transformando os rolos enormes de papel sem vida em cadernos vivos de notícias e desenhos infantis e obituários e classificados e entretenimento. Lembro-me de andar meio disperso por aquela rua de história e perdição e de me imaginar adulto naquele submundo, embora não tenha voltado àquela rua jamais. Lembro-me do frio enquanto cochilava sobre pilhas de cadernos já impressos usando papel-jornal em branco como cobertor. Lembro-me dos olhos alegres e vivos do meu irmão, que se ria da minha inexperiência em encadernar o jornal, embora fosse eu mais velho do que ele. Tempos depois, os olhos desse irmão não estariam nem alegres nem vivos, e meus pais começaram a morrer também. Morte lenta, demorada e dolorosa. Passado tanto tempo, eu ainda não terminei de morrer.


Mas outubro tornou-se outro, e nem vou falar da cafonice estadunidense do Halloween que nos querem empurrar goela abaixo. Falo, sobretudo, da bienal política das eleições. Nos tempos da minha quase inocência, as eleições aconteciam, quando aconteciam, no dia 15 de novembro, feriado da Proclamação da República. Embora eu ainda não tivesse idade para votar, atuei com paixão naquele pleito de 1982, na primeira eleição direta para governador depois de 20 anos. A dor de ser eliminado da Copa pela Itália já havia passado (maldito Paolo Rossi), então eu podia exercer minha rebeldia contra o sistema (maldito sistema). A polarização da época era entre o MDB, de Jader Barbalho e o PDS, de Oziel Carneiro, candidatos ao governo do estado. Mais: era uma disputa contra o militarismo ali representado por Jarbas Passarinho e tudo o que ele representava da ditadura. Então, eu vestia camisa, empunhava bandeira, colava cartaz. Com outros rebeldes da época, eu saía a pintar os postes da Avenida Doutor Freitas com o nome JADER. Na noite seguinte, a turma do Oziel vinha e completava abaixo do que havíamos escrito: ROTADO (“que filhos da puta”, eu dizia de mim para comigo). E eu discutia com eloquência de quem saía do grave para o agudo na pronúncia de uma mesma palavra. É dessa época um material de campanha em que ninguém menos que Chico Buarque segurava uma foto de Barbalho com os dizeres TRAGO NO PEITO A CHAMA DA VITÓRIA! Faz algum tempo que joguei fora aquele material e que não toco no assunto de ter apoiado Jader Barbalho alguma vez. Conforto-me com a ideia de que agi em legítima defesa contra a repressão. Jader Barbalho era a alternativa naquele tempo contra a milicada raivosa. Membro de uma oligarquia antiga no Pará, Jader permanece no poder com seu DNA monárquico. Os coronéis apenas saíram dos quartéis.


Aí as eleições saem de novembro e vêm dar a outubro alguma importância a cada dois anos. E o desenho que se vem revelando de uns anos para cá é que boa parte da população brasileira passou a criar ranço da democracia. E a eclosão de uma extrema direita cheia de ódio e hipocrisia faz pensar que o coronel Passarinho, um dos signatários do AI-5, reencarna na fala de muitos que se saíram vitoriosos neste outubro acalorado. A grande diferença é que Jarbas Passarinho possuía erudição e um sarcasmo elegante. A tropa da nova extrema direita, por sua vez, jacta-se de sua ignorância e de seu desapego à ética e à concordância verbal. E então, chegamos a mais um domingo de outubro, dia de segundo turno em muitas cidades brasileiras, inclusive a minha Belém de Nossa Senhora; em Santarém, onde parte de meu coração bate, e João Pessoa, onde vivo há 16 anos (a minha querida Macapá, aquele lugar da chuva que eu não sabia se era estado ou capital, resolveu seu problema eleitoral no primeiro turno). Nesses lugares, a direita lutou contra a extrema direita, e eu me vi na condição vergonhosa de preferir o ruim ao péssimo. Em Belém a oligarquia Barbalho, corrosiva como toda oligarquia, venceu a truculência de um estranho que se vangloria de ter matado “muita gente”. Em Santarém, a disputa foi entre outro apadrinhado de Barbalho e outro bolsonarista, adepto da conduta nada republicana de seu mestre. Em João Pessoa, o embate se deu entre um prefeito, cujas mulher e filha andam de tornozeleira eletrônica por suposto envolvimento como um povo barra pesada do narcotráfico, e um bolsonarista que esteve à frente do Ministério da Saúde durante a maior mortandade no país de pessoas para a mesma doença. Nesses três lugares, o mal venceu. O pior está aguardando sua vez. Mas isso não é tudo para o dia 27 de outubro.


Neste dia, há três anos, minha mãe morria do mal que levara seu filho 30 anos antes. Então outubro deixa de ser uma espécie de Sergipe, de Plutão, de outono. Evangélica que era, minha mãe não dava muita bola para a festa religiosa do Círio, mas não deixava de fazer sua maniçoba e/ou seu pato no tucupi para o almoço daqueles domingos. Eu comemoro o Natal, mesmo não sendo católico nem evangélico nem nada (Meu coração não aprendeu nada. / Meu coração não é nada, / Meu coração está perdido). E comemoro o Círio naquilo que me sobrou de alma. Voltando à Gaspar Viana numa noite de Trasladação. Voltando à Praça da República para ver os olhos alegres e vivos de meu irmão. Voltando a ver meu pai com uma pilha de jornais na cabeça caminhando com seu passo de equilibrista. (Ele, que carregou a corda por 32 anos depois da perda do filho, não aguentou dois anos de fardo com a perda da companheira de quase uma vida.). Voltando a ver aquela procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão, e me emocionando porque sabia que tempos depois, eu sentiria inveja da fé daquele garoto. Fé que eu devo ter lançado ao Carro dos Milagres quando achei ter sido atendido por Nossa Senhora quando lhe pedi algum entendimento para aquilo tudo. Hoje, desconfio que a Nazaré me enganou. Ela levou minha fé, e eu continuo sem entender a crença das pessoas em santos que são vestidos por mantos ou que se vestem de fardas ou ternos. Mas outubro parece não querer acabar. No dia 29, dia de nascimento do meu amigo Zé Maria, aquele que defendeu minha canção no festival de Santarém, morria o escritor Fernando Canto na cidade de Macapá. Mas para falar de Fernando Canto, há que destinar muitas outras páginas, e por mais numerosas que sejam, não serão suficientes para falar minimamente de sua grandeza criativa. Então eu me vejo entre a celebração pela vida de um artista e o lamento pela partida de outro, porque o espetáculo não pode parar.


Mas outubro nem sempre foi assim!

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