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MAYA | Stefanne Kamilly Martel Magalhães

  • juliarojanski
  • há 5 horas
  • 5 min de leitura


La Donna Della Finestra [The Lady of Pity] (1881)
La Donna Della Finestra [The Lady of Pity] (1881)

Dante Gabriel Rossetti (English, 1828 - 1882)

Maya sempre foi considerada uma garota destemida. Era respeitada em sua casa, mesmo antes do Mal se abater em toda a cidade onde ela nasceu e cresceu. Macapá nunca mais foi a mesma. Maya nunca mais foi a mesma. Ou talvez tudo o que aconteceu só tenha trazido à tona quem ela sempre foi: uma garota covarde e amedrontada. Depois de perder toda a sua família e ser acolhida pelos Fonseca, era de se esperar que ela não hesitasse em fazer a única coisa possível para salvá-los, certo? Mas ela não conseguia. Maya, “a destemida”, estava com medo.


Ela era jovem quando tudo começou. O Mal foi levando pessoas do mundo todo, até atingir Macapá. Ninguém esperava. Ela viu as pessoas que amava morrerem. Amigos, família, um a um foram levados. Por alguma piada cruel do universo, ela estava entre os poucos sobreviventes e era imune.


As pessoas foram dando um jeito de sobreviver, apesar dos recursos escassos. A substância que podia evitar o Mal era rara, e a cura para ele mais ainda, então quem os tinha, detinham também poder. Macapá estava organizada em pequenas comunidades e apenas uma possuía a cura para o Mal que levou a sua família e que agora se abatia sobre os Fonseca.


Eram sete comunidades ao todo. Cada uma levava o nome da família que a fundou - responsável pela ordem e provisões. Carvalho, Ferreira, Martel, Freitas, Matos, Machado e os Fonseca. Cada família era responsável por manter sua comunidade. Quando o Mal vinha sobre alguma família, o medo aflorava. Em um mundo caótico e sem esperança, as pessoas precisavam de algo em que se apoiar. As famílias davam esperança. Com alguém para as comandar, elas sobreviveriam. Sua comunidade estava prestes a perder a esperança.


Os Fonseca caíram doentes e a única coisa ao alcance de Maya era dar aos Matos o que eles queriam. Eles possuíam a cura, mas queriam algo em troca. Quando se tratava deles, sempre havia uma condição. Assim que olhou nos olhos de Leo Matos, sabia exatamente o que precisava fazer. Sentiu nojo dele, nojo de si e de até onde as pessoas iam para se sentirem poderosas.


Desde que a família Matos tomara posse da cura, tirara grande proveito desse fato. Eles tinham escravos - mulheres, em sua maioria, por motivos que Maya evitava pensar - que foram obrigados a deixarem suas comunidades, para conseguirem salvar quem amavam.


Assim que a notícia de que os Fonseca haviam adoecido se espalhou, Leo Matos foi até eles. Vomitou sobre sua falsa generosidade, deu seu preço e partiu. Eles não tinham muito tempo. Maya sabia que, para os Fonseca, ela fazia parte da família. Sacrificar a dignidade de Maya não era uma possibilidade para eles.

– Vamos pensar em outra maneira, Maya. – foi o que disseram.


Mas se tratava de uma promessa vazia, não havia outra forma de salvá-los. Não lhes restava tempo para uma viagem à outra cidade que pudesse lhes fornecer a cura e nem outra comunidade em Macapá a possuía.


Sem dar nem um sinal do que ia fazer, Maya passou nos quartos e tentou deixá-los mais confortáveis, primeiro no quarto do casal, Lilian e Marcos estavam aparentemente estáveis. A febre havia diminuído um pouco e a respiração não parecia tão pesada, mas Maya bem sabia que isso não significava nada. Quem era acometido pelo Mal não sobrevivia a menos que tivesse a cura.


No quarto das crianças, Maya sentiu um aperto no coração. Júlia ardia em febre. Estava tão quente que parecia prestes a entrar em combustão. Maya colocou panos com água fria em sua testa e colocou o ventilador mais perto dela. Pedro parecia um pouco melhor, apesar da respiração entrecortada. Eles eram tão pequenos, tão indefesos. Toda uma família com o destino selado que cabia a Maya mudar.


Ela temia por eles. Haviam se tornado sua família, então ela podia viver longe se soubesse que eles estariam vivos. Os Fonseca eram sobreviventes, em todos os sentidos. Tinham passado por tanta coisa e lutaram com garra não só uns pelos outros, mas por toda a comunidade. Eles precisavam continuar vivos. Quando Maya fez menção de sair do quarto, Pedro segurou sua mão.

–  Você está indo, não é? – Maya não disse nada. – Maya, por favor...


Ele estava à beira das lágrimas, o que foi estranho e doloroso de ver. Pedro estava calejado demais, apesar da tenra idade. Em três anos morando com ele, Maya nunca o vira chorar, nem quando perdeu seu melhor amigo para o Mal.

Maya se inclinou e beijou sua testa.

–  Eu amo você, maninho. Amo todos vocês.


Quando saiu da tenda, ela deixou as lágrimas caírem. Lembrou de sua mãe e da dor que a consumiu quando a luz se esvaiu de seus olhos. Ela foi a última a partir. As palavras finais de Maria Chagas pairavam sobre Maya agora. “Seja forte, minha querida. Tenha coragem.”

Mas Maya não tinha certeza se o que estava prestes a fazer era, de fato, corajoso. Depois de presenciar a morte de cada pessoa que amava, sem poder fazer nada, ela não suportaria passar por isso de novo.


Ela sabia que a sua decisão causaria dor àqueles que a acolheram com tanto amor. Como a pequena Júlia ficaria ao perceber que, para ela viver, a sua querida Maya teve que se submeter a uma vida de servidão para o homem mais cruel de todo o Amapá? E Pedro, se culparia por não ter conseguido impedi-la? Lilian e Marcos sentiriam que fracassaram com Maya?


Maya sabia a resposta para essas perguntas e se fosse minimamente honesta consigo mesma, veria que seu sacrifício era muito mais para privá-la da dor de perder mais alguém. Mas o que ela poderia fazer? Era um dilema terrível que Maya ficou remoendo ao deixar o abrigo da comunidade na Praça da Bandeira e seguir em direção ao que antes era o centro comercial de Macapá.


Deveria deixá-los morrer e viver com a dor e a culpa ou deixá-los viver com a dor e a culpa? Era humanamente possível tomar essa decisão? Como que tudo isso aconteceu? As perguntas eram tantas, mas nenhuma resposta lhe ocorria e o medo a consumia. Parou em frente ao prédio de uma antiga loja que funcionava como sede da comunidade dos Matos. Ela nunca havia entrado lá e ainda não sabia o que fazer. Perguntou-se como as pessoas ainda lutavam umas com as outras, mesmo em tempos tão cruéis. Era horrível pensar que alguém podia ser desumano a ponto de brincar com as pessoas como se elas fossem peças descartáveis de um tabuleiro.


Mas essa, infelizmente, era a única realidade que Maya conhecia. E não importavam mais as suas dúvidas. Ela não podia deixar sua família morrer. Não importava para onde ela olhava, o que via era um futuro triste. Leo foi ao seu encontro. O sorriso dele a deixou com vontade de chorar. Lutando contra as lágrimas, ela disse:

–   Você ganhou. Mas eu não entro aí enquanto não tiver certeza de que a minha família sobreviveu.

          

Ele fez sinal para alguém atrás dele levar a cura até os Fonseca. Maya sentiu o coração aliviado, o que a surpreendeu. Percebeu que poderia suportar seu futuro desde que eles estivessem vivos. O mundo podia ser muito injusto, mas ficaria um pouco melhor se os Fonseca ainda respirassem. Matos era cruel, mas os Fonseca eram bondosos e justos. Tudo ficaria bem. Maya caminhou em direção ao prédio com a cabeça erguida, deixando para trás um Leo contrariado.

 

 

Stefanne Kamilly Martel Magalhães. Graduanda de Letras pela Universidade do Estado do Amapá (UEAP), nascida em Macapá-AP, criada em Santana - AP. Ama Jesus, livros e estudar literatura.

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