Por Silvio Carneiro
Era uma vez um país em transição. Era uma vez um país com uma nova moeda; um herói do esporte morto numa curva e um título inédito no futebol. Era uma vez um país oscilando entre alegria arrebatadora, luto profundo e a esperança de mais um milagre econômico. Era uma vez o estranho ano de 1994, época em que se dizia que o nosso dinheiro ia valer mais que o dólar americano e que estocar vento dava muito dinheiro. E “um povo com dinheiro no bolso é sempre um povo feliz”. E foram mais ou menos com essas palavras que um grupo de homens metidos em seus paletós e gravatas prometeram que o Morro do Camelinho, lugar isolado no meio da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, seria o futuro do Brasil com a instalação da primeira usina eólica do país. A usina, equipada com quatro torres de cerca de trinta metros de altura funcionou por vinte e um anos, mas em 2015, assim como do dia para a noite abriu, da noite para o dia fechou, deixando as comunidades do entorno com aquela enorme e perturbadora sensação de vazio.
É nesse cenário de promessas não cumpridas e esperanças despedaçadas que Marcela Dantés ambienta seu novo romance, "Vento Vazio" (Companhia das Letras; 2024), dez anos depois do fechamento da usina do Morro do Camelinho. Publicado pela Companhia das Letras em 2024, o livro de 236 páginas nos leva ao fictício vilarejo de Quina da Capivara, onde os ventos de mudança nunca cessam, mas frequentemente deixam um rastro de desolação.
Dividido em três partes, "Vento Vazio" é narrado por quatro personagens cujas vidas se entrelaçam em meio ao abandono da usina eólica. A primeira parte, "Livro de Miguel", nos apresenta um vigilante senil que relembra com nostalgia e amargura os dias em que a usina ainda funcionava. Miguel é o guardião das memórias do vilarejo e de seus habitantes, um homem cuja idade avançada e memória vacilante conferem à sua narrativa um tom melancólico e, por vezes, confuso.
A segunda parte, "Livro das Outras", nos introduz a Cícera e Alma. Cícera vive em isolamento autoimposto na única casa murada da Quina da Capivara, uma decisão que Miguel interpreta como uma afronta aos vizinhos. Sua história é contada através de cartas endereçadas a Alma, filha do homem mais rico da região, que abandonou uma vida de luxo para viver um amor puro e sincero com Paulo, um rapaz local. Alma, por sua vez, é uma jovem cheia de sonhos e otimismo, determinada a encontrar felicidade e propósito na simplicidade da vida no vilarejo.
Finalmente, a terceira parte, "Livro de Maura", traz à tona os mistérios do passado e do presente. Maura é uma jovem que sofre de transtornos psiquiátricos graves, mas que, paradoxalmente, é a chave para desvendar os segredos ocultos da trama. Sua perspectiva única e perturbadora lança uma luz sobre as sombras que permeiam a vida dos habitantes da Quina da Capivara.
Em "Vento Vazio", Marcela Dantés tece uma crítica afiada ao processo de exploração dos recursos naturais sem cair nos clichês de discursos moralistas ou panfletários. Ela dá voz àqueles que realmente vivem as consequências dessas políticas, trazendo à tona os inúmeros prejuízos causados por usinas eólicas em pequenas comunidades pobres do Brasil. A narrativa aborda de maneira sutil e poderosa os impactos ambientais, sociais e econômicos, como a perda de biodiversidade, o deslocamento de comunidades e a precarização das condições de trabalho.
Dantés consegue inserir essas questões de forma orgânica na história, sem que o texto perca sua força literária. A realidade das personagens de "Vento Vazio" é tão palpável que nos faz lembrar do documentário "Vento Agreste" (2022), produzido pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Instituto Mãe Terra, que denuncia a chamada "Síndrome da Turbina Eólica" — um conjunto de sintomas que afetam comunidades expostas aos ruídos e à poluição das usinas eólicas.
"Vento Vazio" é um romance que prende a atenção do início ao fim, com personagens complexos e bem construídos. Maura, com sua loucura e clareza paradoxais, é, sem dúvida, a personagem mais intrigante e memorável. Dantés nos convida a refletir sobre o custo do progresso e as cicatrizes invisíveis deixadas por projetos ambiciosos que, muitas vezes, não consideram o impacto humano e ambiental.
A leitura de "Vento Vazio" é uma experiência envolvente e provocativa, que nos faz questionar as promessas de um futuro melhor e os sacrifícios exigidos para alcançá-lo. Após devorar as páginas deste livro, assistir ao documentário "Vento Agreste" se torna quase obrigatório, complementando a compreensão das complexas relações entre desenvolvimento e sustentabilidade.
Marcela Dantés nos presenteia com uma obra que é, ao mesmo tempo, um retrato fiel da realidade e uma exploração profunda da ficção. "Vento Vazio" é um lembrete poderoso de que, mesmo nos lugares mais esquecidos, as histórias e as vidas têm um peso que não pode ser ignorado.
Livro: Vento Vazio
Autor: Marcela Dantés
Editora: Companhia das Letras
Ano de Publicação: 2024
Páginas: 236
Gênero: Ficção literária
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