Quem tem medo de poesia (parte 2) | Mathias de Alencar
- Silvio Carneiro
- 2 de jun.
- 7 min de leitura

3. Poema e poesia
Aproveitando a citação do poema de Pessoa, é preciso esclarecer aqui alguns termos que usamos quando falamos de poesia. Antes de tudo, poesia, como vimos, diz sobre a ação de poetizar e seu efeito sobre o leitor. O produto da poesia é o poema, aquilo que efetivamente lemos. Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior, deixa bastante claro isso em seu conhecido poema chamado Poesia.
Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
Inunda minha vida inteira.
Repare como, aqui, o verso, que representa o elemento constitutivo do poema, se recusa a se realizar, embora a poesia esteja ali, em todo aquele momento em que o poeta esteve às voltas com sua tentativa de materializá-lo através da pena. Vale a pena, poderíamos ironicamente perguntar, ter a poesia sem o poema? Para Drummond, se a pena não escreve, se o verso não se materializa, se o poema não vem a ser, a poesia de estar ali presente ao exercício de pensá-lo, de senti-lo vivo cá dentro, justifica sua vida inteira.
Isso ocorre porque, ao contrário do que muitos imaginam, não se trata em poesia de se derramar através do verso simplesmente gesticulando a pena, a caneta, os dedos na tela ou no teclado, dizendo o que sente sem fingimento, às claras, cruamente. Mesmo a crueza da descrição, em poesia, é tarefa trabalhosa, e aqui outra vez sempre vale nos lembrarmos da bela frase de Clarice Lispector em A hora da estrela: “Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”.
Chamamos de poética as muitas formas de se trabalhar o poema poeticamente. Uma poética é a forma particular de fazer o verso cantar — uma maneira de jogar com as palavras a fim de produzir uma experiência de som e imagem, fazendo a palavra encarnar o significado a partir da riqueza sonora e imagética possíveis, no intuito de despertar uma ideia, um sentir, uma experiência. Esse jogo se obtém por meio não só de assonâncias (repetição de vogais) e aliterações (repetição de consoantes), também da rima (final ou interna aos versos) e sobretudo da métrica, a arte de compor versos de modo a construir estrofes (o conjunto de dois ou mais versos) ritmadas, que apelam para a audição em sua musicalidade, enquanto os significados se constroem. Poesia é, portanto, dar corpo às palavras, um corpo que canta e dança e se mostra no que diz. Um corpo sem isso é apenas um cadáver.
Há quem rejeite essa herança poética, acreditando poder produzir novidade desde o nada, ou assumindo que a poesia não precisa de técnica para ser poética. A esses, sempre será válido lembrar-lhes a lição do mestre concretista Augusto de Campos, para quem “o conhecimento efetivo do-que-foi-feito é a melhor maneira de nos prepararmos para fazer e entender o-que-não-foi-feito e o-que-se-pode-fazer-de-novo em poesia”. Não dá para inventar a roda, mas podemos fazê-la girar de novas formas.
Só se recusa a aprender com a tradição poética quem, afinal, não pode fazer de si mesmo outra coisa que não um deserto de dores não fingidas. É o que lemos em Mallarmé (na tradução do próprio Augusto): “o poeta incapaz que maldiz a poesia/no estéreo areal de um deserto de Dores” [Le poète impuissant qui maudit son génie/ A travers um désert stériles de Douleurs].
4. O dilema do poético hoje
A quem conheça, o mínimo que seja, a poesia contemporânea (um bom termômetro do que se tem feito em poesia hoje pode ser encontrado em seleções de poemas, de iniciativa de revistas como a Cult ou de portais literários como o Fazia Poesia), aquela caracterização que apresentei, na forma de se entender a produção poética, parecerá não só obsoleta, mas em muitos casos indesejável. Isso porque a modernidade costuma pensar a poesia como autoexpressão, como prerrogativa de dizer o que se sente — às vezes despersonalizando o fazer próprio da poesia, ao aproximá-la demais da prosa ou de outras formas de linguagem. Mesmo que valendo-se do verso para isso, como nesse poema de Sérgio Vaz:
A poesia é meu álibi
De que entre versos e rimas
O meu único crime foi
Escrever com alma a vida dura que herdei.
Porque sou desses poetas
Que bebem veneno com gosto de perfume
Esperando que outros é que morram,
E tanto faz de amor, raiva ou paixão.
O que chamei de despersonalização do poema aponta para a irresistível proximidade com a prosa, de modo tal que se não estivessem dispostos em versos o poema passaria facilmente como um parágrafo prosaico. É o caso do poema acima. O que o torna um caso interessante é que, me parece, observamos o poeta evocar essa despersonalização como um crime: ao compor com alma a vida dura herdada (4), escrever significa fazê-la transparente, tanto a vida quanto a poesia, sem musicalidade ou simbolismo, sem condensação de sentido ou metáforas em profusão, apenas e tão-somente as palavras dizendo o que dizem, sem maquiagem ou agrado (perfume). É a poesia sendo prosaica, para dizer sem ambiguidades a crueza do que se vive.
O poeta acredita, no entanto, que seu crime não significa a morte da poesia, mas de uma forma de poesia — aquela que, preocupada com a forma, esconde ou mascara a crueza do real. Aquela que, como vimos em Pessoa, finge a dor. Para Sérgio Vaz, não se trata jamais de fingir, porque adornar os versos e rimas seria matar a realidade vivida: quanto mais cru o verso, quanto mais despidas de ornato forem as palavras, mais vivas elas se farão ouvir. Deixe que outros morram (7) envenenados com suas formas, porque afinal nem importa o que dizem (8) — eles não se fazem ouvir, porque mortos.
Pode a poesia inocentar este ato contra ela? Eis todo o dilema do fazer poético hoje.
Há algo nessa forma prosaica de entender a poesia que alude a pressupostos românticos, ou mesmo realistas, que permanecem difusos desde pelo menos a queda da Bastilha. A revolta contra um padrão universalizante, o bastião da racionalidade até então, insuflou o alvorecer das subjetividades em literatura para um modo de se manifestar apaixonado, no sentido mesmo de um mergulho no obscuro dos desejos e das motivações, que tendeu a substituir a força centrípeta do significado por uma ação centrífuga, não mais carregada de um projeto de fazer ao dizer, mas de dizer o que faz, naquela muitas vezes incurável banalidade que culmina no afundamento narcisista de um modernismo tão facilmente imitável quanto pensa jamais querer imitar alguém.
“A ênfase nos direitos da subjetividade individual tendia a levar ao rompimento a aliança clássica entre homem, natureza e Deus. A natureza, que servira de mediadora para o encontro do criado com o Criador, desde que a beleza aceitasse sua semelhança com a verdade e assim se cumprisse a imitatio [imitação], mostra-se agora deserta e hostil”. (Costa Lima, O controle do imaginário)
Não custa lembrarmos que essa postura banalizadora em se pensar o poema, no entanto, não impediu de observarmos nascer entre nós poetas da envergadura de Drummond e Murilo Mendes, de Manuel Bandeira e Cabral de Melo Neto, de Cecília Meireles e Hilda Hilst, todos mais ou menos afeitos, mas de nenhum modo indiferentes, à arte do verso em sua poética originária. Mesmo que entre nós a Musa grega tenha se tornado um anjo torto, cantar jamais deixou de ser a arte do fingimento, aquela que obriga Cabral, no dístico (estrofe de dois versos) inicial de sua Psicologia da Composição, ter de dizer: “saio de meu poema/ como quem lava as mãos”.
Não parece casual que tenha surgido, a partir dessa herança modernista, debates virulentos sobre os limites que separam a poesia da canção. É letra de música ou verso poético? — era a pergunta que o movimento concretista dos irmãos Campos e de Décio Pignatari pôs em circulação mais uma vez, e as respostas, por vezes inflamadas como a de Bruno Tolentino, ainda estão longe de ser definitivas. A posição mais comum, similar a que lemos em Antônio Cicero, diz-põe o caso grego como uma forma de testemunho do entendimento de que a poesia nasce como uma canção. A questão voltou ao centro do debate quando o prêmio Nobel foi entregue a Bob Dylan em 2016.
Em suas idas e vindas, o que se percebe é o costume de confundir a canção poética, aquela dos gregos e a dos cancioneiros medievais, com a canção popular, em que a letra está inevitavelmente “algemada à melodia”, como esclarece o nosso Manuel Bandeira. O caso grego é deveras sugestivo, porque sabemos que a música instrumental servia tão-somente ao verso, que era o principal da sua arte. Se lemos Homero dizer cantar desde a inspiração das Musas divinas, é porque seu poema, que só foi escrito posteriormente, se nutre da voz, do gestual, da performance oral, mas em nada isso depõe, antes ratifica, a autonomia do verso, de que falava o próprio Antônio Cicero. E havendo entre as canções certas letras cuja autonomia poética se torne defensável, é porque há nelas os princípios fundamentais do que faz acontecer a poesia.
5. Uma última nota sobre o que há de potente no poético hoje
Para os que talvez não desculpem tais apontamentos parecerem antiquados ou erocêntricos demais, valeria notar de que modo essa força centrípeta da poesia — em produzir seu efeito estético sobretudo em função de uma artesania que faça ecoar, desde o vigor de condensação da palavra, a intencionalidade do mundo, assumindo as coisas e os seres, portanto, não como objetos de um usufruto predatório, e sim como vivências do efeito de sermos humanos nessa totalidade em que somos e nos encontramos presentes — se aproxima de posições perspectivistas, como a dos nativos de nossas terras. Aquilo que na poesia moderna se destaca como de maior valor me parece estar, de algum modo, no efeito de presença que Viveiros de Castro apontou certa vez, sem nenhuma pretensão de falar sobre a poesia:
“… um objeto é um sujeito incompletamente interpretado. Aqui, é preciso saber personificar, porque é preciso personificar para saber… Os artefatos possuem essa ontologia interessantemente ambígua: são coisas ou objetos mas apontam necessariamente para uma pessoa ou sujeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não-material. E, assim, o que uns chamam de ‘natureza’ pode bem ser a ‘cultura’ de outros. (Metafísicas Canibais, p. 52-53)
Aprecio bastante essa forma de compreender as coisas. Ela me mostra, inclusive, que não precisamos recusar completamente a tradição ocidental, como se toda ela fosse racionalista e tecnicista, e operasse sob a lógica de uma utilidade que instrumentaliza o mundo. A riqueza da experiência poética, que destaquei em sua origem, ainda dá mostras de formar nosso ouvido para a escuta desse mundo encantado, informando nossos versos com os quais aprendemos a ler o mundo em nós mesmos. E mesmo que o verso livre em Whitman e os jogos metafóricos em Mallarmé pareçam abrir nova forma de se pensar a poesia, são eles na verdade o fruto amadurecido de modos outros de estar no mundo, de estar presente, em que a palavra se encarna ainda daquela força simbólica produzida desde sua origem.
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