Amar é uma arte. Se bem que esse clichê vem desde os versos memoráveis do poeta latino Ovídio, exímio artista da palavra e das polêmicas amorosas. Autor de um manual de conquista e de sedução, o seu Arte de Amar explora a batalha dos sexos com uma ironia hoje fatalmente perdida. Algo, contudo, se conserva: a ideia de que é preciso aprender a amar, e o poeta se propõe a ensiná-lo com desenvoltura. Porque, afinal, amar é coisa de poeta, e de latino. Aí vai outro clichê, por certo, mas não pretendo continuar esse texto defenestrando clichês, não é para isso que estamos aqui. E para que estamos aqui? Gosto de jamais perder a perspectiva da pergunta, porque quem para de perguntar deve estar com a barriga cheia de verdades, arrotando mandamentos. Eu só arroto quando a azia está em alta. Um mal inevitável a bebedores de café. Eu disse mal? Bem-feito, era como minha mãe retribuía as travessuras na infância. Já adulto, ouço menos desses deboches, um pouco mais de condescendência. Talvez minha mãe já não arrote verdades. Certo é que o mundo anda tão complicado... Para que complicar mais? Só que essa pergunta é capciosa, pois o contrário de complicar é simplificar, e nós sabemos o quão perverso o simples pode ser. Sabemos? Tomara que sim. Se eu for parar para explicar, o simples fica complexo, e aí vocês vão me acusar de não cumprir o que prometo, tal como se acusam os latinos, os poetas, os amantes... Vê bem se isso já não é um ataque, de ciúme sim, ora se não! Para que vocês querem saber de tudo?
Mas se amar não deve ser um querer saber, de que arte falamos, esses poetas e ladinos? (Não se apoquente com a letra alterada aqui, foi proposital). Já estou um pouco alterado, creio. E não me creiam de todo, não se deve acreditar em poetas, latinos e ladinos... Não se deve acreditar em ninguém, na verdade. Mas do que é que estou falando? De amor, ora. “Se alguém deste povo desconhece a arte de amar, que leia este poema [carmen] e, uma vez instruído, ame”, eis o convite de Ovídio. Um convite em carmen, que em latim diz a canção, o poema. Eu acrescento, nessa deixa que Ovídio nos deixa, que tal como a leitura, que exige de nós familiaridade com as condicionantes do ato de dizer, no geral, também no amor é preciso certo tipo de familiaridade com a pessoa humana, em geral.
Queria mesmo era dizer, pela leitura, antes de qualquer coisa, todo o meu amor, nessa familiaridade com os livros que de certa forma me permite amar as pessoas – e se não ouso dizer amá-las melhor do que quem não lê, ao menos amo mais intensamente. Intensamente: advérbio de modo de intensidade, para dizer como amamos extremos. O leitor chega a extremos no amar, pois aprende a ouvir além do que o outro diz, porque está, como ninguém, consciente dos limites do dizer. A seu modo, ele aprende a amar porque ama ouvir carmen. Eu nunca amei uma Carmen, porém. Mas já cheguei a alguns limites. Quem não lê não sabe dizer mais do outro que de si mesmo, sobretudo não sabe de seus limites. E quem não os conhece, não pode ultrapassá-los.
Comecei a ler por incentivo, como é natural. Só que ele veio das obrigações escolares – pois é verdade, ao contrário do que se pensa por aí, certas obrigações também incentivam. Em casa, tive pais leitores, mas não tive livros, além daqueles que a escola recomendava a compra enquanto material paradidático – dito assim em jargão pedagogó, que é mais para assustar do que seduzir. Difícil, porém, é lembrar onde foi operado o giro, a torção que me abriu ao mundo da leitura. Do que recordo, foram os livros da Série Vaga-lume, saudosa companhia de leitura, que me iniciaram, para além dos gibis: aquele Xisto ainda não me sai da cabeça, além de um outro, algo sobre máquinas e robôs, esse ideário de criança de anos oitenta, do qual não me recordo mais o título.
Sobre o tal giro, no entanto, sobre esse instante em que não são mais os livros que nos chegam, mas nós que chegamos aos livros, creio estar esquecido em algum lugar da memória do meu corpo, que resiste com essa ganância toda de querer desvendá-lo, de querermos saber de tudo. O que permanece são imagens, índices aqui e ali de minha incompetência para conversar, me relacionar, para chegar na menina por quem meus olhos dilatavam – é verdade, pode não parecer, mas já fui tímido de doer de raiva aqueles que me viam empacar, feito minha mãe quando empaquei, eu era um pajem um tanto pasmo na porta da igreja, levando as alianças de minha tia. Eu mesmo tenho raiva de mim só de me contarem a lerdeza. Guardo disso apenas uns flashes na memória, iguais aos que me invadem – ou devo dizer, borbulham – nas cenas quando em mim revejo as garotas tão amadas sem saberem, eu em silêncio, lendo livros em silêncio, apesar daquelas vozes todas ao redor, e cá dentro.
Essa coisa de silêncio, por estar sempre na sua companhia, desconfiei me fosse o melhor resumo da própria arte de saber se conhecer. Quem muito fala não se ouve, não é o que dizem os livros de autoajuda? O que eles não falam, porém, é que jamais nos ouvimos se não tivermos familiaridade com as palavras, e as palavras vem necessariamente de fora, do outro, ou do que falamos aos outros, do que escrevemos. Só mergulhei em mim pela escrita, do mesmo modo que só pude me reconhecer depois que saí de mim. Parece clichê, mas a experiência está aí para quem quiser experimentar. Mais do que uma fuga, o silêncio da leitura, eventualmente da escrita, é um retorno, vindo de fora, para o que afinal somos. É, melhor dizendo, um ciclo. Não se chega a esse não-dizer do silêncio por uma incapacidade de falar, como se estivéssemos justificados, bem ao contrário – silencio não porque não sei dizer, mas porque sei que o dizer não diz tudo, porque sei agora exatamente o que não sei ou não quero dizer. Sei? Não estou certo, a gente vai tateando ainda, vamos criando familiaridades e desconfianças à medida que lemos e relemos. À medida que amamos.
Pois amar é uma arte, eu dizia (ou era Ovídio?). Mas de que arte falamos? Tal como a leitura, o amor parece nos revelar, à medida que estejamos dispostos a correr o risco de sujar as mãos, a não mais nos mantermos fechados em si mesmos, ensimesmados pelos medos e frustrações. Leitura rima com abertura (esses clichês hoje estão em todo canto!), porém nem só de rima vive o amor. Ora viva o amendoim, diz o verso do nosso poeta (des)iludido, e que não se chamava Raimundo. Se não cuidarmos, e falo aqui do amor, ele nos revira em posse, em domínio, em ciúme. Esse é só o avesso do verso, no entanto: é só mais um verso perverso de estilo drummondiano. É todo o seu (e nosso, e do amor) limite.
Ovídio, o poeta latino, também ladino, nos leva mais longe nessa (em sua) arte sobretudo em Metamorfoses, ali onde amar é se tornar outro, é muitas vezes enganar para assumir a verdade, é ter em vista que o outro, para mim, é mais do que um outro de mim mesmo. Je est un autre, dizia Rimbaud, mais um poeta, agora francês, psicanalista avant la lettre, diagnosticando o isso, a coisa que, mais do que nos habitar, somos, ou que se (nos) faz, quase sempre, apesar de nós. Metamorfoses é o grande épico latino sobre a plasticidade dos amores, sobre como desejamos mais e melhor (sejam humanos ou deuses ou bestas) quando sabemos mudar. Nesse ser-não-ser que a leitura expõe (sobre nós), é preciso concluir, nas palavras do poeta, que amar se aprende amando – cito outra vez Drummond, me desculpem, prometo ser a última, mas é que o amor faz isso com a gente...
Pois também amo Ovídio. E com ele, aprendo que ler se aprende lendo. Tudo bem, não da mesma forma pela qual se aprende a amar, é verdade. Na leitura, não há beijos, há no máximo o cheirar de folhas, alguns toques para sentir a textura da capa, um encontro de olhares... Uma delícia! Mas me deixem voltar. Eu dizia algo sobre aprender com Ovídio – Nada que é vivo permanece da mesma forma. Essa lição do poeta, a mesma deixada por Heráclito (ou por Pitágoras, como Ovídio sugere ao final do livro), está na constatação algo terrível sobre a impermanência de todas as coisas, a mesma de que nos fala Rilke, o poeta alemão com quem Freud dialoga num belo texto sobre a transitoriedade. Se o psicanalista, em seu texto, se opõe à inconformada tristeza que abate o poeta diante da finitude da beleza, ao lermos o poeta observamos que a melancolia, em sua fase madura, se faz esclarecer por uma sensibilidade não de todo avessa a certa alegria, até mesmo ao prazer que deve nos comover esse fim de tudo: Auch noch Verlieren ist unser; und selbst das Vergessen/ hat noch Gestalt in dem bleibenden Reich der Verwandlung. (Também perder é nosso; e mesmo o esquecimento/ ainda tem forma no reino perene da metamorfose)[1].
Nosso é também o fim... Sobretudo porque não está em nosso poder conservar as coisas, evitando perdê-las. A beleza desse fluxo constante, que nos escapa pelos dedos, há de ser sentida aí mesmo, na sua disposição de sempre ser algo outro, de se observar desde uma nova forma, cuja metamorfose não apaga mas revela o ímpeto de querer ser outra vez, de continuar a ser algo, de ser lembrado por isso. Não há mais Rilke ou Freud, mas há Rilke e Freud, em nós, toda vez que sua voz é lida outra vez – nunca, porém, da mesma forma que a primeira, as formas são outras, e por isso mesmo, cada vez mais bela, pelo silêncio que com elas aprendemos a escutar. Não sei vocês, mas para mim há encanto nisso tudo, que provoca nosso canto ao amar em vez de odiar, como fez Cupido com Ovídio, levando seu verso para longe da guerra, para trazê-lo ao limite do se dispor a beleza de partilhar o que nos comove, o que nos salva. O amor nos acostuma a dar ouvidos ao que raramente se deixa ouvir duas vezes, quando depois de dito, se apaga. Perder também é nosso. E não é porque se apaga, ou termina, que não foi belo.
Acho mesmo que é para isso que afinal estamos aqui. Estamos? Às vezes fico com a impressão de falar sozinho... Mal de poeta, por certo. Ou mal de amador? “Transforma-se o amador na cousa amada”, vem agora a voz de Camões, nos ensinando a amar. Serei eu carmen? Por certo não, nunca amei uma Carmen. Ou então vario, já estou alterado de algum modo, toda vez que escrevo é isso, não me creiam de todo. Não sei vocês, mas a leitura me acostumou, da melhor forma possível, a variar. Amar também é uma forma de loucura, já dizia Platão, aquele outro grande poeta. Amar é variar. Dessa arte, não há saber, por certo, não no sentido de uma ciência ou proficiência, talvez apenas no sentido de uma arte [ars], aquilo que faz um artesão, aquilo que um artesão faz. Uma arte forjada no erotismo das mãos, esse mais sensível instrumento para lidar com a brutalidade das coisas, para amoldá-las em sua aspereza.
Ser maleável enquanto propriedade não dos materiais, e sim do artista: eis a maior das lições de Ovídio em Metamorfoses. A rigidez e a simplicidade são formas de morrer em vida, de perder o viço e o fluxo de se sentir sendo, e por isso, de se perder. Assim também ocorre no amor. Nada dura, e para vê-lo mudar com o encanto poético da beleza, é preciso saber ler suas formas de variar, de doar e de restringir, de ceder e de ocultar, de aceitar sua atração e sua aversão constantes. O amor muda, se metamorfoseia. Ao aprendermos a sustentar a decisão de ainda amar, ao decidirmos permanecer amando, será em vista de todo esquecimento, que conserva a mais bela forma em nós, aquela que não se constrange em mudar – eis a melhor forma de poder ganhar no que se perde.
Eu ganho a minha, além de escrever, lendo. E vocês, quanto perdem sem ter lido? Talvez não saibam, é verdade, só se dá conta do desperdício quem pode sentir a falta. E que falta faz termos bons leitores, ao menos termos leitores! – eles são o tributo mais honroso de toda a vida que tantos vivos puseram em palavras, antes de morrer. Eu não deveria dizer, mas é um desperdício uma vida que passa ao largo da leitura, desconhecida de si mesma, nunca observada minimamente ao espelho da consciência, esse reflexo de ser um ser que sabe ser, que sabe amar. Bem mais do que aprender a amar lendo, aprendi a ler amando. Se vocês ainda estiverem aqui, ouça se não é mesmo um desperdício terminar essa curta vida sem ter amado, tão intensamente quanto esses versos nos convidam a fazer:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Uma beleza esses versos! Mas é verdade, me perdoem se cito outra vez nosso iludido poeta desiludido, mas é mais forte do que eu... Se vocês amam, vão saber o que é isso.
[1] Rilke. Transitoriedade. Tradução de Laura Moosburger. São Paulo: Editora Clandestina, 2018.
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