A Reforma Protestante teve, como evento emblemático, a afixação por Matinho Lutero de suas 95 teses contra a Igreja, principalmente contra a cobrança de indulgências. O que muitos desconhecem, porém, são as 97 teses que o mesmo Lutero, em sua juventude, elaborou contra a teologia e a filosofia desenvolvida à época pela escolástica. Ou seja, o Martinho era mesmo um homem de muitas teses, de muitas listas.
Bem ao gosto desse gênero literário, o filósofo Leibniz expôs noventa teses de sua teoria sobre as mônadas, obra cujo rigor dedutivo sempre foi admirado por quem aprecia mais a inércia do pensar do que o prazer da ação. Aos mais ansiosos por praticidade, no entanto, aquelas onze teses contra Feuerbach, de Karl Marx, parecem menos obtusas que a do outro alemão, talvez por serem de menor quantidade, ou de menor pretensão. Ou talvez seja só impressão.
Se pensarmos bem, o gênero dessas listas que expõem supostas verdades, que os coachings adoram e os autores de autoajuda praticam com regular devoção, derivam, umas mais que outras, daquela primeira lista, a das tábuas de Moisés, com mandamentos vindos diretamente de Deus, ou do que Moisés supôs ouvir de um arbusto que queimava (sabemos o que plantas queimando podem provocar e evocar).
Entre as dez teses de Moisés e as onze de Marx, há uma longa história de mal-entendidos, daqueles com que se faz guerra e morte pelo crime funesto de ter opinião. Como pretendo ir direto ao ponto, sem ser curto nem grosso, mas com alguma dose de desconforto, listo apenas 13 teses, que seriam melhor chamadas hipó-teses, do grego hypo, abaixo, a fim de dizer que, parafraseando Marx, alguns filósofos se preocuparam até agora em pontificar teses, mas se trata, na prática, de pô-las abaixo. E por que 13? Superstição.
Faço, então, enquanto filósofo, o trabalho sujo de dizer essas coisas sobre (e não raro, contra) o atual estado de nossa literatura, coisas muitas vezes ditas à boca miúda, mas que trazem sua verdade. Se não for este o caso, tanto melhor. Antes a verdade que a bajulação.
Os movimentos literários estão mortos, mas os ídolos continuam bem vivos, e cada um que cuide de entrar em algum gueto, pois sem um bando as andorinhas não fazem verão nenhum, e ainda correm o risco de morrerem queimadas, na fogueira. Pois já se queimou muito livro em praça pública, mas quase sempre eram os melhores da época. Hoje, porém, são tantos os livros que se queimam por si mesmos que fazer fogueiras suficientes só contribuiria para agravar a crise ambiental.
Por falar em crise, os clássicos da literatura costumam ser encontrados, no Brasil das últimas décadas, em prateleiras mais à direita, já que à esquerda só entram aqueles livros escritos por culturas que não oprimam minorias. E sendo as minorias maioria, quem defende um clássico acaba mais suspeito do que quem o lê. Mais suspeito ainda é sair em defesa do cânone literário – por ser considerado a quintessência da exclusão e do silenciamento, quem o abomina não parece se dar conta de que a falta de critério para o mérito literário é, no fim das contas, dar poder de exclusão à mão invisível, e opressora, do mercado.
A melhor forma de neutralizar a lei opressiva do mercado, que em cada época dita modas com interesses mais econômicos e políticos que literários, é reconhecer o valor daquele tipo de leitor fadado à extinção: o crítico literário (sim, eles ainda existem) não é censor, mas juiz, que expõe juízos de gosto sobre os livros com algum critério literário sólido, quase sempre fundado na boa leitura de outros bons escritores. Mas só em dizer juiz, juízo de gosto, bom, mérito, critério... Quem já não sente comichão nas orelhas?
Afinal, o que é mérito literário, senão aquilo que faz dos bons escritores bons leitores? Afinal, o que faz um bom leitor, senão o fato de ele ser capaz de se alegrar ao ouvir, nas entrelinhas do texto, aquilo que o silêncio diz?
É por isso que o mercado, sempre sagaz em sua mão invisível, fez acreditar que os ditos Youtubers e Book influencers de plantão são a nova safra dos críticos literários: digo “fez acreditar” sobretudo os próprios Youtubers, que dão dicas e esboçam leituras como quem nada feliz na superfície das águas, quando melhor seria não dizerem nada.
Se vale o conselho, não mergulhe assim de cabeça em leituras novas, para não correr o risco de batê-la no raso dos livros de hoje em dia. Quando ouço alguns tão zelosos em cavar profundidade para certas leituras (contemporâneas ou não, mas sobretudo contemporâneas), a imagem que me vem é a do coveiro, satisfeito com seu buraco a sete palmos (melhor deixar a ironia ecoar aqui, sem traduzi-la).
Numa época de imagens, livros feito só de palavras vendem menos que linha de pipa durante o calendário escolar. Tudo bem que, no Brasil, o livro é artigo de luxo, dado o preço que custa – mas o que se tem feito para baixar o preço sem rebaixar o livro?
Abrir uma editora, inclusive, tem sido mais lucrativo do que sustentar uma livraria, o que provoca um inquietante paradoxo cultural: haveria mais escritores que leitores? Se isso acontece, não seria (eis o pior) por que os próprios escritores não costumam ler? E se isso acontece (o que é ainda pior), não seria por que os autores, se fossem sinceros, sequer comprariam seus próprios livros, caso fosse outro a escrevê-los?
Ninguém negaria que hoje qualquer um pode ser escritor, fazer sua noite de autógrafo e divulgar suas publicações. Mas daí a vender seus livros é outra história. Como por aqui são poucos, muito poucos os que leem, o mercado das editoras, sempre cada vez mais bem adaptado ao gosto do freguês – no caso, os autores, não os leitores – já não querem arcar com os custos da publicação. Bem ao contrário, eles ganham sua grana com o desespero que faz todo mundo querer publicar, a despeito do interesse dos leitores, ou da qualidade do que escrevem. Editoras que apenas servem de gráfica são, no fundo, a erva daninha da literatura atual, a que chancela o sonho do escritor como sendo, ao final, o pesadelo do leitor.
Quem já foi a alguma Bienal do Livro, observou ao menos três coisas: 1. Se apertares a mão de alguém que acabou de conhecer, é possível que ele te ofereça um autógrafo; 2. Ir para comprar livros é ser assaltado à queima-roupa, de maneira consentida; 3. O enorme apreço que esses eventos têm por filas quilométricas são, na verdade, o maior incentivo à leitura que eles conseguem oferecer: facilmente se pode ler dois romances contemporâneos brasileiros em um único dia de passeio.
É importante dizer que o melhor incentivo à boa leitura não é dado por espaços como o das livrarias, caso ainda haja alguma em sua cidade. É mais indicado ter bibliotecas sempre abertas, caso ainda haja alguma em sua cidade – dificilmente alguém compra um produto do qual não se sinta devidamente necessitado.
Convenhamos, do jeito que caminham as coisas por aqui, em um futuro próximo, os ratos de academia dominarão os esgotos todos, relegando os ratos de biblioteca a um exílio a céu aberto, ou aos museus, onde serão expostos à curiosidade geral dos corpos malhados de cabeça oca.
Por fim, mas não menos importante, o que faz nossa literatura digna de ser lida, digna de durar além da sobrevida que o marketing torna possível a certos livros, está em que ele ecoe, na força poética da palavra dita, a presença atemporal dos nossos melhores escritores. Um livro que não fale apenas do seu autor, mas que tensione em si mesmo parte da riqueza de nosso lugar no mundo, como se lê na prosa de Machado de Assis e Guimarães Rosa, ou na poesia de Drummond e de Cabral de Melo, jamais se esquece. E o escritor que jamais esquece de olhar para eles há de ganhar os melhores leitores.
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