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Foto do escritorSilvio Carneiro

Herança | Ori Fonseca

Atualizado: 7 de dez. de 2024


Fui comprar pão e quando voltei, já era dezembro. Mais exatamente 1° de dezembro. Então, eu encontrei motivo para ser feliz e começar esta crônica que pretende ser curta e direta como dezembro costuma ser. Neste dia, meu pai estaria fazendo 82 anos e, por ser domingo, estaria agitando filhas, filhos, noras, genros e uma leva de netos para um inevitável churrasco. E, por ser um dia depois de o seu Botafogo conquistar uma inédita Taça Libertadores da América, ele estaria mais agitado e feliz. E estaria contando piadas das quais ele se ria à demasia, e o ouvinte ria de sua risada. Meu pai ria fácil de tudo. Quando criança, eu era uma espécie de bobo que contava umas anedotas sem graça, mas que, aos ouvidos de meu pai eram a coisa mais engraçada do mundo. Tempos depois, minha fantasia foi passada imperceptível e tacitamente para meu irmão mais

novo. E meu pai se ria à larga de tudo o que meu irmão falava e que lhe parecesse engraçado. E não era só um riso de alegria, parecia que havia naquele riso um tempero de orgulho por ser meu irmão uma espécie de duplicata de meu pai. No físico e na voz, meu irmão é o que há de mais próximo do que meu pai foi. Por isso, meu irmão tornou-se um piadista melhor do que eu. Por isso, tornou-se melhor do que eu. Porque consegue ser parecido com meu pai, algo que eu jamais conseguiria por não ser seu filho biológico e, portanto, sem graça alguma.


Agora, eu quero que o Botafogo seja campeão brasileiro para que eu fantasie uma felicidade ainda maior de meu pai. Ele, que sempre foi um apaixonado por futebol e que me ocupava as tardes de domingo, levando-me ao Baenão para

alguma partida do Clube do Remo, esse, sim, a sua verdadeira paixão futebolística. Há tanta importância nas coisas comezinhas da vida, que só nos damos por isso quando nos faltam. Segurar a mão de meu pai quando íamos ao estádio era um ato banal e corriqueiro e que, na minha cabeça infantil, aconteceria sempre. Mas tudo acaba. E não me venha alguém dizer que existe algo infindável porque terá de provar por A mais B que tal coisa existe. Eu soltei a mão de meu pai e perdi o rumo. E quero ser feliz imaginando sua felicidade, seu riso franco e engraçado, seus brilho sincero nos olhos que não sabiam esconder alegria. Olhos que não sabiam negar alegria. Então, hoje, eu sou só alegria e felicidade. Mas, eis que de repente, ouço Maria Bethânia cantando uma canção de Gustavo de Carvalho e Lourival Faissal. E caio de cara na realidade.


Tudo mentira,

O meu sorrir não condiz

Com meu viver isolado e tristonho,

Sou muito infeliz.


Volto para dentro de mim e aceito o desafio para provar que, sim, existem coisas infindáveis. E ouço Vinicius de Moraes me sussurrando:


Tristeza não tem fim,

Felicidade, sim!


E esta saudade que me dilacera não só não parece ter fim, como só aumenta. A saudade é uma herança incômoda, necessária e que da qual não se pode desapegar. Aquele que padece da saudade, e que são todos os que vivem, desaparecerá algum dia. Mas a saudade de que padeceu encontrará morada em novo hospedeiro. Eu não pude herdar o DNA de meu pai. Não tive a sorte de meu irmão mais novo, que o ouve toda vez que fala, que o vê ao espelho. Eu herdei a saudade que ele, sem saber, passou para mim enquanto segurava minha mão ao subir a arquibancada do Baenão, ao atravessar a Almirante Barroso para pegar o ônibus, ao me abençoar quando eu era digno de benção. E quando penso na alegoria da bênção, vem-me mais uma vez a figura de Vinicius. Não para orar o seu Samba da Bênção, mas para dizer que a felicidade pode ser extraída de um ato banal e sublime, como torcer por um time de futebol:


Mas me diga uma coisa, Mr. Buster

Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:

(…)

O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?

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