Ela Não Mora Mais Aqui | Dauan Lopez
- Silvio Carneiro
- 25 de jun.
- 8 min de leitura

Juan Gris (Spanish, 1887-1927)
As janelas estavam abertas, mas o ar não entrava. O apartamento continuava imóvel, como se segurasse a respiração desde a última vez em que ela cruzou a porta. Havia poeira nos livros, nas prateleiras, na xícara esquecida ao lado da cama. Havia silêncio, principalmente. Um silêncio que não se ouve, mas que pesa nos ombros.
Eduardo não mudara nada desde que ela se foi. As plantas, agora secas, ainda ocupavam o parapeito. A escova de dentes dela ainda dormia na pia. O cheiro do cabelo dela ainda dormia no travesseiro.
Ela não disse adeus.
Apenas se levantou num domingo, colocou os sapatos em silêncio e saiu. Sem cena. Sem drama. Só uma ausência crua e definitiva, como a morte dos passarinhos depois da primavera.
Ele se acostumou com a ausência como quem se acostuma com uma dor no fundo do peito — não o suficiente para matá-lo, mas o bastante para lembrá-lo todos os dias que está ferido.
Durante semanas, ele não conseguia olhar para o espelho. Não porque não suportava seu próprio rosto, mas porque era ali que ela costumava aparecer, escovando o cabelo, passando batom, olhando de lado e rindo da própria pressa. O espelho ainda carregava aquele rastro de presença, como uma sombra que insiste em não se apagar.
Às vezes, Eduardo acordava no meio da noite e achava que ela estava na cozinha, preparando chá. Jurava ter ouvido os passos leves, a chaleira tilintando. Uma vez, chegou a falar em voz alta:
— Quer que eu pegue o açúcar?
Ninguém respondeu.
Ele sentia como se ela estivesse em tudo. Na maçaneta que ainda girava devagar, nos livros com a dobra da página onde ela parou, no ímã da geladeira com o número do restaurante tailandês que ela gostava.
Ela havia ido embora, mas algo dela continuava ali. Ou talvez fosse apenas ele, incapaz de deixá-la partir. Com o tempo, os amigos pararam de perguntar por ela. As pessoas voltaram a tratá-lo como “Eduardo”, e não como “o Eduardo e a Luíza”. Mas ele ainda dividia o sofá com um espaço vazio. Ainda colocava dois pratos na mesa, por hábito ou por esperança — nem ele sabia ao certo.
Um dia, em pleno fim de tarde, ele escreveu numa folha qualquer:
“Ela não mora mais aqui, mas deixou as luzes acesas.”
Dobrou o papel, colocou dentro do livro que ela nunca terminou, e fechou.
Ficou ali, sentado, ouvindo o silêncio como quem escuta um velho vinil arranhado: com saudade, mas também com uma estranha ternura.
Porque no fundo, Eduardo sabia: há ausências que fazem mais companhia do que certas presenças.
Os dias se tornaram indistintos. Eduardo já não sabia mais o que era segunda ou sábado. Vestia-se com a mesma camisa que repousava sobre a cadeira, com o mesmo silêncio amassado do dia anterior. A rotina era quase um teatro de sobrevivência: levantar, abrir as cortinas, preparar café — sem açúcar, porque era ela quem gostava doce — e esperar o tempo passar, como se algum dia ele pudesse descer do relógio e bater na porta.
A solidão era um bicho estranho. Não gritava, não mordia, mas se deitava com ele todas as noites e sussurrava memórias. A solidão tinha o cheiro do shampoo dela, tinha o som da risada dela quando tropeçava no tapete da sala, ou como chamava o nome dele, de leve, como quem segura uma xícara quente com as duas mãos.
Ele começou a ouvir coisas.
Às três da manhã, a torneira pingava — e ele jurava escutar a respiração dela no quarto ao lado. Às vezes, o armário rangia — e ele imaginava que era ela pegando um dos vestidos floridos que ainda insistiam em existir no fundo da gaveta. O rádio ligou sozinho uma noite, e tocou uma canção que ela amava. Ele não desligou. Sentou-se no chão da cozinha e chorou até a música acabar.
Não era loucura. Não completamente. Era presença. Uma presença invisível, viva e fria como mármore, que morava em cada canto da casa e no corpo dele. Era como se ela tivesse se dissolvido no ar, e agora vivesse ali — como fumaça de vela que não se apaga.
Ele parou de sair. Tinha medo de que, ao voltar, ela tivesse realmente ido embora.
E então, um dia, Eduardo tentou jogar fora os talheres que ela escolheu. Pegou a caixa, fechou com fita, levou até o lixo do prédio. Mas parou no elevador. As mãos tremiam. O peito se apertou. Lágrimas secas vieram aos olhos. Voltou ao apartamento, como se carregasse algo frágil e sagrado. Recolocou tudo no lugar.
— Não é apego. — Disse para si mesmo. — É respeito.
Mas ele sabia que era medo. Medo de matar o pouco que restava dela. Medo de matá-la de novo, só que com as próprias mãos.
Às vezes, sonhava que ela voltava. Entrava com uma sacola de pão fresco, ria da cara dele, dizia “como você viveu sem mim, hein?”. E ele acordava, com um sorriso na boca e um buraco no peito.
Aquela presença invisível se tornou uma segunda pele. Ele andava com ela, respirava com ela, dormia com ela. Não falava para ninguém. Era seu segredo mais íntimo — e mais pesado.
Naquela tarde, sentado no chão da sala, Eduardo acendeu todas as luzes.
Fechou os olhos.
— Sai. — murmurou. — Por favor. Me deixa.
Mas a luz tremeluziu. E o ar gelou, como se alguém houvesse acabado de passar.
Ela não estava ali, mas continuava lá.
O inverno chegou sem que ele notasse.
As cortinas permaneceram fechadas por dias, e Eduardo passou a andar pela casa de meias grossas, como se caminhasse sobre gelo. Não ligava o aquecedor. Achava que o frio ajudava a preservar o que restava dela no ar — como se a ausência congelada fosse mais fácil de suportar do que o calor das lembranças.
O telefone tocava de vez em quando. Ele não atendia. Amigos desistiram. Até a mãe passou a ligar só aos domingos, por obrigação, para perguntar se ele ainda estava comendo. Ele respondia que sim, e mentia com a voz mansa de quem não queria preocupar ninguém.
Mas o que comia, na verdade, era pouco. O apetite havia se dissolvido com o cheiro dela. O que lhe alimentava era outro tipo de coisa: o ritual repetido, os objetos imóveis, o cheiro dos livros. A dor, por mais terrível que fosse, era familiar. E ele já não sabia mais quem era sem ela — mesmo que ela só existisse ali, como lembrança.
As sombras deixaram de assustá-lo. Ele começou a conversar com elas. Dizia “boa noite”, deixava o canto do sofá vago, limpava o lado esquerdo da pia. Às vezes, ria sozinho — porque ouvir sua própria voz fazia com que ele se sentisse menos ausente de si mesmo.
Foi numa dessas noites, envolto no nada, que ele teve um gesto automático. Acendeu o abajur da sala para escrever algo que sentia — um bilhete, um rabisco, qualquer coisa — e percebeu que a lâmpada estava queimada.
Ficou parado, olhando para a luz que não vinha, pegou a lâmpada, foi até a gaveta onde ela costumava guardar as reservas, e percebeu que não havia nenhuma. Ela sempre lembrava dessas coisas. Ele, não.
E então, pela primeira vez em meses, sentiu raiva. Uma raiva pequena, absurda, tola — mas viva.
— Por que você foi embora e deixou tudo pra eu cuidar? — sussurrou, encarando o nada da sala.
A frase ecoou dentro dele.
Ela não estava mais ali.
Não porque era um fantasma.
Mas porque ele a mantinha ali à força.
Não queria esquecê-la, mas havia se esquecido de si.
E foi nesse instante banal, cercado pelo silêncio e por uma lâmpada queimada, que Eduardo entendeu: ela não iria voltar. Nem como presença, nem como ausência. Ela havia ido embora, e agora era ele quem precisava sair. Sair de dentro da casa. De dentro da saudade. De dentro de si mesmo.
Pegou o casaco, calçou os sapatos, abriu a porta e caminhou até a saída do prédio — sentiu o ar frio da noite.
A rua estava vazia, mas havia vento.
E, pela primeira vez em muito tempo, o ar entrou. Mas ele desistiu, voltou para dentro, voltou ao quarto, se desarrumou e dormiu.
Na manhã seguinte, Eduardo acordou com os olhos abertos. Não houve sonho, mas havia uma leveza incomum no corpo, como se algo, durante a noite, tivesse se soltado, mesmo que só um fio.
Colocou o casaco surrado, enfiou as mãos nos bolsos e saiu de casa com um único propósito: comprar uma lâmpada nova.
As ruas estavam geladas, o céu pintado de chumbo. As pessoas passavam encolhidas, embrulhadas em seus próprios silêncios. Eduardo caminhava devagar, como quem pisa num mundo esquecido — ou num sonho que ainda não acabou. Observava vitrines, cachorros em casacos de lã, galhos nus balançando ao vento. Tudo parecia quieto, mas vivo. Tudo estava ali o tempo todo — ele é que não via.
Na loja, escolheu uma lâmpada simples. O atendente disse:
— Bom dia.
Eduardo respondeu com um aceno pequeno, mas sincero. Pagou, agradeceu. Sentiu, pela primeira vez em meses, que existia.
Voltou para casa com a lâmpada no bolso. Tirou o casaco, pegou uma cadeira, subiu nela. Com mãos firmes, rosqueou a lâmpada nova. E, quando apertou o interruptor, a sala se encheu de luz morna.
Ficou ali, parado, observando o brilho suave preencher os cantos escuros.
Algo dentro dele se mexeu. Foi até o espelho do corredor. Fazia tanto tempo que não se olhava. Esperava encontrar ruínas, mas havia algo a mais.
Linhas marcadas, sim. Olhos fundos. Mas também havia uma luz. Ele sorriu. Pequeno, quase tímido, mas sorriu. Um calor percorreu o corpo, subindo devagar pelas pernas, pelo peito, até alcançar o rosto. Não era fogo. Não era febre. Era... Presença.
A sua própria presença.
Sentiu-se abraçado por algo invisível. Não por ela, mas por uma paz leve, de quem finalmente aceita o que partiu — e o que ficou.
Então viu a foto, estava presa na porta da geladeira, meio escondida sob um ímã, ela sorria, o verão brilhava ao fundo, ele pegou a foto nas mãos, olhou por alguns segundos, como quem se despede sem palavras.
Foi até a cozinha. Pegou um fósforo. Riscou. As chamas dançaram com cuidado. A imagem dela se desfez em cinza. Ele observou, em silêncio.
Depois, sentou-se à mesa. Preparou café. O cheiro era quente, quase novo. Bebeu devagar. E, pela segunda vez naquele dia, sorriu sozinho.
Um riso pequeno, mas inteiro. E então, de repente, ouviu uma batida na porta. Não se assustou. Não correu. Apenas olhou para a madeira firme a sua frente — ainda aquecido por dentro.
E ficou ali, calado.
A madeira não se moveu. Ninguém insistiu. O som cessou como uma onda que se recolhe, devolvendo o silêncio — agora diferente. Não era mais o vazio que doía, mas o espaço que se abria.
Eduardo respirou fundo. Caminhou até a janela. Abriu as cortinas. O sol da manhã esgueirava-se entre os prédios, tímido, mas constante. Lá embaixo, a cidade seguia: buzinas, passos, vozes. A vida, essa estranha teimosia. Ele encostou a testa no vidro. Sentia o calor fraco da luz aquecer sua pele. Era como se, pela primeira vez, o mundo lá fora tocasse o seu mundo interior.
Fechou os olhos e sorriu novamente — não por alívio, nem por alegria, mas por presença. Pela simples constatação de estar ali. Porque compreendera, enfim, que amar alguém é também saber deixá-lo partir — e que há um momento em que a saudade deixa de ser morada, para virar memória.
Voltou à sala, agora iluminada. E enquanto ajeitava a cadeira, o casaco, o café, entendeu o que antes não podia:
Ela não mora mais aqui.
Mas ele, finalmente, voltava para sua morada.
Dauan Lopez, estudante de letras pela UEAP, nascido em Macapá e crescido no Bailique, desenvolveu um grande amor pela leitura aos 8 anos e aos 12 começou a escrever seus próprios contos. Poeta, amante de Clarice Lispector e desenhista.
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