top of page
Foto do escritorSilvio Carneiro

Canto de Comunhão | Ori Fonseca


“Todos os dias, quando acordo”, estou com uma canção na cabeça. E não precisa ser de manhã, na hora de sair da cama, pode ser em qualquer hora da madrugada, entre um sono e outro, lá está uma canção sendo cantarolada na mente. Pode ser uma música que passei o dia ouvindo, pode ser alguma ouvida acidentalmente, pode ser outra, lembrada por algum acontecimento no dia. O fato é que a música sempre foi uma cúmplice dos meus devaneios. Quando criança, eu possuía uma memória prodigiosa para gravar letras de canções com apenas poucas audições. Minha mãedrinha não entendia como eu não memorizava uma pequena lista de compras nas idas à mercearia do Seu Manuel da Paraíso, mas gravava de imediato uma letra de música ouvida ao rádio (fui criado pela madrinha desde os cinco anos até o momento de alçar voo e nunca pousar duas vezes no mesmo lugar).

 

De fato, eu tinha talento para gravar letras de canções quando menino. Roberto Carlos era meu artista musical preferido. Eu aguardava ansioso o fim de dezembro para me desafiar a memorizar na primeira audição a canção de lançamento de seu LP anual. Ali, de ouvido colado à eletrola Philips, um móvel robusto de madeira e que sintonizava a Super Rádio Marajoara (sic), de Belém. Alguns anos depois, minha preferência musical experimentaria um upgrade, e minhas atenções se voltariam para as obras de Chico Buarque. Ainda hoje, Chico é a minha referência do que há de bom na música brasileira. É claro que admiro, e muito, outros artistas, mas Chico é o meu diapasão.

 

Parece irônico que no texto deste mês eu esteja acariciando a música, quando no do mês passado eu quase a desqualifiquei em comparação com a minha querida Matemática ( https://www.ozezeu.com/post/agora-eu-vou-contarorivaldo-fonseca). Mas a verdade é que a música sempre ocupou um espaço enorme em meu coração e minha mente. E devo isso muito à minha mãe. Embora eu tenha sido criado pela madrinha, as casas eram vizinhas, como se fossem de parentes próximos, com um portão que unia o que a cerca de acapu tencionava separar. Invariavelmente, eu cruzava aquele portão para ouvir mais de perto minha mãe cantar. Ela fazia as atividades domésticas sempre cantando. Não era um simples cantarolar, mas uma performance musical bela. Mais recentemente, quando estive com ela pela última vez — última mesmo —, eu me punha solitário no sofá da sala, enquanto ela, ao jirau da cozinha, entoava agora hinos evangélicos em contraste às canções mundanas de outrora. Eu ficava envolvido de uma melancolia aguda e sustenida como a antecipar uma saudade que viria a sofrer muito em breve. Ela cantava os seus hinos, e eu murmurava mentalmente parte de Genipapo Absoluto, do Caetano: 


Tudo são trechos que escuto: vêm dela

Pois minha mãe é minha voz

Como será que isso era este som

Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”.

 

Esta paixão pela música fazia querer aprender tudo que aos meus ouvidos fosse belo. Então resgato um texto escrito por mim em 2019, durante a ditadura bufa de Jair Bolsonaro, quando se queria impor, como forma de mostrar patriotismo, a execução do Hino Nacional nas escolas de ensino fundamental.

 

SOBRE HINOS, BANDEIRA E OUTROS SÍMBOLOS

 

Eram meados dos anos 1970, eu cursava a segunda série primária na escola Plácido Aristóteles na Sacramenta, em Belém, num prédio pertencente à Assembleia de Deus. A ditadura seguia sangrenta, e eu não dava por isso. Na aula de Educação Moral e Cívica, as crianças respondíamos a plenos pulmões que o presidente da República era o general Ernesto Geisel, que o governador do Pará era o doutor Aluísio Chaves e nos vangloriávamos por saber que na Bandeira Brasileira, a estrela correspondente ao estado do Pará é aquela que reina absoluta sobre o lema ORDEM E PROGRESSO. Em uma dessas aulas, a professora Sara se dividia entre as tarefas de afastar o pó de giz dos óculos, enxugar o suor da testa provocado pelo calor agônico de uma tarde de junho e escrever a letra do Hino Nacional para que a pirralhada copiasse. (Estes parênteses se fazem necessários para ilustrar que até os nomes me acionavam um gatilho musical. O nome de minha professora fazia pensar numa tal Sarah da qual não se sabe se morreu na guerra em Israel ou se sobreviveu: “Sarah, onde é que você se esconde? / Sarah, minhas cartas por que não responde?”. No fim, o apaixonado da canção interpretada pelo sergipano Balthazar se pergunta: “Será que você vive em Israel? / Ou será que você está no Céu?” Bem, se Sarah ainda vive em Israel e se concorda com a política genocida de Netanyahu de dizimar o povo palestino, ela que não espere que se lhe abram os portais do Céu. Três anos mais tarde, eu encontraria outra Sara em minha vida estudantil. Tratava-se de uma colega da 5ª série que fora eleita representante de turma. O representante de turma era uma espécie de X9 na classe, e a Sara sabia desempenhar muito bem aquele papel. À menor desordem, ela fazia valer sua prerrogativa de autoridade e mandava o desordeiro ficar de pé voltado para a parede no canto da sala próximo à porta. Quando sua autoridade era questionada, a Sara descia mais baixo ainda na crueldade: chamava a Dona Adalgisa, uma preta corpulenta com olhos de fera que não pensava meia vez antes de arrastar um curumim pela orelha e deixá-lo na solitária da Secretaria da escola, a emblemática Graziela Moura Ribeiro, mais tida por reformatório do que por escola, na Sacramenta dos meus primeiros anos. Por sua conduta, a Sara logo ganhou o temor e a antipatia dos colegas, sobretudo os meninos. Deles, recebeu o apelido de Sarará pela lógica aliteração com seu nome. Então a música mais uma vez aparece. Não lembro se eu fui o criador da pérola sexista que se mostrará, é possível, ou se foi criação coletiva de delinquentes no alto de seus 11 anos. Tomou-se um carimbó do Pinduca, cujo trecho dizia “Se eu soubesse eu não ia no mato / Pra tirar sarará do buraco” e se fez a seguinte paródia: “Se eu pudesse, eu só ia no mato pra botar no buraco da Sarará”. Muito 5ª série. Parafraseando o Chico, “Ai que saudade que eu tenho dos meus 11 anos, que saudade ingrata”. Mas fechemos os parênteses e voltemos à Sara professora e sua lida em escrever a giz a letra do Hino Nacional). Eu já conhecia e amava aquela canção, então podia me dar ao prazer de contemplar a Silvane, alguém que eu conhecia e amava mais do que ao hino.


Vendo que eu não copiava, em um de seus passeios entre as carteiras, a professora me olhou por sobre os óculos de giz:


-  Não estás copiando por quê?

-  Porque eu já sei o hino!

-  Ah, é?

-  É!

(Risadinhas aqui e ali).


Sara foi à sua mesa e retornou de lá com um caderno pequeno e a palmatória.


-  Pois então copia este! E mostrou a letra do Hino à Bandeira na contracapa do caderninho.

-  Eu conheço esse também!

(Mais risadinhas).


-  Pois agora tu vais cantar esse hino. Se errares uma palavra, levas zero na prova e cinco bolos em cada mão!

-  E se eu cantar certinho, levo dez e nem preciso vir no dia da prova? (Minha vontade era de fazer uma contraproposta também para as palmatoriadas).

(Aí as risadinhas já tinham se transformado em gargalhadas explícitas).

-  Tudo bem, mas canta!


E eu comecei a entoar os versos de Bilac postos na melodia de Francisco Braga. - “Salve, lindo pendão da esperança. Salve, símbolo augusto da paz!...”


De repente, era tudo silêncio à exceção da minha voz de oito anos ecoando naquela sala enorme. À capela, eu via os olhos da professora movendo-se sobre a contracapa do caderno, certificando-se de que eu cantava certo. Eu via a cara de estupefação do Benevenuto (jamais esqueci o nome daquele moleque de cabelo espetado). Eu via a boca aberta da Cecília, uma outra paixão daquele ano (naquela idade, o tempo passava tão preguiçoso, que, em um ano letivo, era possível ter diversas paixões eternas) que sabia acompanhar partes do refrão e que era filha - ou neta, não lembro ao certo - de um eterno candidato a vereador cujo slogan de campanha, na boca maldosa do povo, era “Ladrão por Ladrão, Vote Aragão”. Eu via a palmatória decepcionada descansando sobre minha carteira (a palmatória que, tempos depois, vim a perceber como um dos maiores símbolos daquela época em que gente grande também levava os seus bolos se não respondesse corretamente). Mas, sobretudo, via os olhos da Silvane cravados em mim, numa atenção que eu não sabia traduzir se de admiração ou de expectativa no meu erro. Que fosse, pois ela também iria ter de me ouvir lançar Bilac para todos os lados.


E quando entoei pela última vez “Querido símbolo da terra. Da amada terra do Brasil”, a professora explodiu em aplauso, e a turma a seguiu. E as mãos da minha amada estavam lá se batendo por mim... ou pelo hino... ou porque todos faziam o mesmo.


Depois desse dia, nunca mais cantei um hino na escola com o mesmo prazer. Eu os aprendi em casa menos por civismo do que por amor à música. E agora, nestes tempos em que se quer repetir a palmatória e a interpretação do Hino Nacional como obrigação, eu lembro de outra canção, de Lupicínio Rodrigues: “Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei”. Aprenderiam o hino por amor e o cantariam por um amor maior ainda, como um revolucionário.


E ninguém me filmou!


Em seu excelente livro O Animal Social, o psicólogo social Elliot Aronson afirma: “A música existe em toda parte por causa de seu poder de organizar os indivíduos em grupos ou times coordenados de uma forma que nada mais consegue fazer, transmitindo informações sobre o humor de um grupo ou um propósito específico para muitas pessoas ao mesmo tempo”. E acrescenta: “A música é essencial porque ela nos conecta emocionalmente com os outros”. Aronson discorre sobre a música a partir de sua visão de cientista. No texto do mês passado, apresentei as considerações de um filósofo e de um artista amigo meu acerca de suas relações com a música enquanto filósofo e artista. Como não sou nem cientista nem filósofo nem artista, só posso discorrer como usuário que sou dela, musicalizando meu cotidiano, cantando no banheiro, ou dirigindo, ou lavando louça, ou em qualquer momento que uma canção me alcance distraído. Até pode acontecer de eu não cantar em alguma ocasião dessas atividades, mas, certamente, alguma canção estará sendo entoada em minha mente “todos os dias, quando acordo”.

122 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page