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A paixão é o drama | Mathias de Alencar

  • Foto do escritor: Silvio Carneiro
    Silvio Carneiro
  • 12 de fev.
  • 6 min de leitura

 


Esses dias sonhei que eu deixava uma folha com meus escritos voar. Eu estava no bairro onde cresci, tinha encontrado alguns amigos de infância, e enquanto falava com eles, a folha de papel voava bruscamente para longe, em razão de uma ventania que fez sacudir o papel daqui-dali com certa violência. Fui atrás da folha com pressa, atravessando a rua, tentava prever para onde o vento a levaria toda vez que eu me aproximava, até que enfim consegui apanhá-la e voltei para o lugar onde havia deixado os outros papéis. Quando retornei, estavam sentados ali outros amigos de infância, falei uma ou duas amenidades e me retirei com pressa, recolhendo os papéis, preocupado em reencontrar os familiares que estavam à minha espera. Dois detalhes me intrigaram nesse sonho: eu sequer tive tempo de proteger as outras folhas, por que só aquela voou? Mais ainda: tive a sensação de que nada era tão importante nas folhas quanto o fato de rever amigos e seguir para onde minha família tinha ido, porque era neles que estava minha preocupação. Por que me arriscar então para buscar aquela folha solta no meio da rua?

 

Acordei encasquetado, vocês veem? As duas ações não batiam – ou aquela folha era vital, a ponto de pôr minha vida em risco e esquecer de tudo o mais para recuperá-la, ou ela não dizia nada de mais importante do que as relações humanas me dizem. Tudo bem que há um detalhe: mesmo atencioso com as relações, eu me dispus a buscar a folha, recolhi inclusive as que não voaram, não abri mão delas até o fim. Acordei pensando qual questão meu inconsciente não fazia a menor questão de me esclarecer (no fundo, ele está aí para isso mesmo, vocês sabem...). Eu pensava: por que ir atrás daquela folha, se ela nem era mesmo tão importante, por que não a deixar simplesmente voar? Independente do conteúdo da folha, confesso, o sonho me fez ver uma inquietação que tem dado sentido às minhas escolhas na vida. Talvez seja mais inquietação do que um sentido. Não importa. Isso ao menos o inconsciente não pôde esconder, até porque sou povoado por fantasmas mesmo de olhos bem abertos.

 

Vou trazer a inquietação em duas anedotas. Conta-se que o filósofo Aristipo de Cirene, um dos discípulos de Sócrates mais polêmicos, ao perceber que a embarcação na qual viajava iria afundar, mandou que a tripulação jogasse suas coisas ao mar, não sem antes lhes deixar essa lição: melhor que os bens se percam por causa de Aristipo do que Aristipo por causa dos bens. Uma outra anedota nos conta que o grande poeta português Luís de Camões, durante uma tempestade que levou seu barco ao naufrágio, nadou até à costa levando seu manuscrito com o braço erguido, para que o livro não afundasse. São duas imagens para mim emblemáticas, ainda mais porque são pintadas com as cores do mar, uma paixão pessoal. E outra vez o conflito me balança (lembram-se do texto do mês passado?) entre o desapego filosófico, de um lado, e a coragem do sacrifício artístico, de outro. Eis o dilema: para que gastar a vida mergulhado no imenso esforço da produção literária, esperando que outros a leiam, e quando leem, se a conquista filosófica de uma vida boa se dá pela compreensão de que vive melhor quem não depende dos outros? Parece que nesse país de não leitores, de mercado livreiro recheado com escândalos e picuinhas sociopolíticas, vive ainda melhor o poeta que for filosófico, no sentido de jamais depender da escrita nem de leitores, talvez a única forma de não acabar amargurado pelo ressentimento, tão comum entre os literatos. Se for esse o caso, não seria demasiadamente inútil a vida dedicada à arte literária, talvez à arte em geral? Não seria mais confortável simplesmente viver a própria vida?

 

Se aprendi algo com a filosofia, certamente esse algo diz respeito à necessidade de que façamos as perguntas mais difíceis, sobretudo quando ninguém se propõe a fazê-las, porque parece mais confortável deixá-las em silêncio, não pensar sobre elas. Aliás, creio que o pior inimigo da arte, desse esforço e sacrifício com que aspiramos a realizar a experiência estética possível através da literatura, seja esse excesso de vida confortável, de praticidade, regida pela lógica do mínimo esforço, e de sacrifício nenhum. Se há quem ainda insiste em escrever, não será, inevitavelmente, por um agradável afago no próprio ego – desde que não provoque muito desgaste, vocês sabem, há coisas mais importantes na vida do que ficar com a cara nos livros, não? Soa dramático demais? Não creio que só eu sofra assim à flor da pele, ainda que vocês não estejam na minha pele, para saber onde existir me dói mais. Em época de defesa apaixonada dos lugares de fala, no entanto, jamais deixaria vocês de fora do que estou tentando dizer, até porque (vai aqui mais uma coisa em que acredito) a arte diz mais sobre nós humanos do que os milhões de segundos desperdiçados diariamente em vídeos nas redes sociais, exemplo privilegiado hoje em dia para a defesa de uma irrevogável liberdade de se emburrecer.

 

Fato é que Camões não teria arriscado a própria vida se Os Lusíadas tivesse sido composto por capricho, mera coceira no próprio ego, sem que nutrisse o desejo genuíno de que os seus leitores fossem enlevados pelo triunfo humano que a glória de Portugal representava para ele. E nós, particularmente, não precisamos reverenciar a glória de um império que nos fundou em colônia, para nos ser possível apreciar o belo legado do poeta português, porque a arte, quando dignamente elaborada, diz mais do que seu propósito político imediato. Fato é que Camões teria, em contrapartida, pouco se arriscado por ela, fosse ele um filósofo que entendesse, como Aristipo, que sem a arte do desapego não há vida digna de ser vivida. Camões se tornou sua arte exatamente por ele haver transmutado em poesia todo o seu vigor de existir. A dignidade poética é, ao final, a única coisa que dá sentido a vida dos que descobrem haver imortalidade ao gerar rebentos que florescerão em outras tantas vidas humanas desconhecidas. Era, afinal, a redescoberta do tempo que se havia perdido o que movia a mão de Marcel Proust para compor sua obra magna, cujo título nos faz ver tudo o que há de fundamental para o escritor, mas também para o leitor, que certamente descobrirá, ao lê-la, à la recherche du temps perdu.

 

Como poeta, eu jamais me sentiria completamente satisfeito com essa apatheia apregoada por filósofos como os estoicos, e o exemplo de Aristipo, um sensualista bem mais afeito ao ideal de sábio como alguém que experimenta de tudo e retém o que é bom, soa melhor aos meus ouvidos não-cartesianos. Convenhamos, parece não só muitas vezes difícil de realizar o desapego como prática de vida, ainda que filosoficamente defensável enquanto remédio contra o sofrimento, mas ele sustenta um isolamento humano que, diria Aristóteles, ou é coisa de deuses ou de bestas. Em último caso, o desapego pressupõe uma libertação de símbolos e narrativas que nos amarram à cultura, a esse estar-aí no mundo que nos constitui, a fim de criar uma imunidade aos desvãos e desvios que sacodem nossas expectativas. O problema é que essa conexão (tesouro que configura a herança poética de valor inestimável de cada verso feito com maestria em vez de mero capricho) é justamente o que dá significado à existência, é o que dá ritmo ao desenrolar da vida humana, e razão de ser ao que se é no fim das contas. É possível viver plenamente sem as paixões que os poetas tanto se esmeram em produzir com seus versos, sem a força de pertencimento que traduz a experiência estética como participação no vocabulário que nos identifica em meio ao caos do que não tem nome? Não parece dramático, ao contrário, todo esforço em se fazer imune ao desejo, ao delírio, ao destino de nos olharmos melhor dentro do olhar do outro, como se a vida descobrisse seu sentido bem longe de toda a dor e delícia de sermos quem realmente somos?

 

A paixão é o drama. Não por acaso, o teatro tem sua origem na experiência trágica de ouvirmos a beleza do existir. Fugir do sofrimento soa como loucura. Não exatamente aquela manía de que falavam os gregos, um arrazoado cuja qualidade, em vez de ser sub, era sobre-humana, uma inspiração divina não quantificável pelo raciocínio, pelo discurso como raiz do sentido articulado, porque é ela capaz de fazer ver o indizível, o invisível, o imensurável. É antes de uma insensatez patológica que se trata, e não parece casual que seja nossa época, de excessos de conforto e praticidade, a que mais sofre mentalmente. Não é casual a fama das lições estoicas, tornadas autoajuda para quem deseja imunidade diante de tanta loucura. Não sei exatamente como meu sonho pode ser interpretado sem que, no fundo, esteja denunciando a mim mesmo o drama de existir como a maior glória que há para seguir compondo e dando voz ao caos de sentir demais que se está vivo. Se esse divã em forma de texto pode servir para vocês? Eu seria louco se achasse que não.

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