Samba enredo
Dia de feijoada na quadra da escola, no centro da roda de samba as animadíssimas e agora amigas Letícia do Leme e Maitê Suspiro Meu. Pedro presidente no cavaquinho era todo sorriso.
Depois do que se deu entre Maitê e Pedro, ela jogou o Dálio pra linha de fundo. Uma linha de fundo de campo de várzea, daquelas onde ultrapassado o risco da cal, ou da enxada, o passo seguinte se dará no mato fechado, território de cobras e sumidouro de bolas. Bolas de futebol, se bem que às vezes também serve de cenário para o sumidouro de outras bolas. Linha de fundo, tudo bem, o que Maitê não permite é que finquem a placa de FIM com muita facilidade, embora facilite outras fincadas. Dálio ainda estava atravessado na garganta e no orgulho da nega. O samba composto para Letícia do Leme precisava ser cantado. Ela sempre soube que mais dia menos dia, o Dálio cantaria. E cantou, conforme você poderá comprovar daqui a instantes.
Suada, com sede e fome, Maitê saiu da roda, foi até a cozinha de Tia Nenê dar um confere na feijoada, já passava das três da tarde e nada de rango. Cerveja, cerveja e bolinho de aipim não dão sangue, meu irmão.
- E aí tia, como é que é, esse caldo sai ou não sai?
- Caldo é o que sai do meio das tuas pernas, nega metida, minha feijoada é coisa granfa. Volta pra lá, vai aprender a sambar enquanto não fica pronto.
- Aprender a sambar, aprender a sambar, a senhora precisa dizer isso pr`essas neguinhas aqui do morro, pras neguinhas e pra umas e outras que só sabem rebolar. Rebolar não é sambar não, minha tia.
- Agora tenho que concordar contigo, quase ninguém mais sabe sambar. Tem neguinha aqui que samba muito pior que nós da velha guarda, da ala das baianas, mas o pessoal da diretoria gosta, querem ver é bunda balançando esses desavergonhados. Tem bunda, mete um saldo alto na piranha, esses tarados já ficam todos excitados querendo pegar a piranha. Samba, pra que samba? Por isso que a escola tá assim. Mas volta pra lá, volta pra lá que a chapa vai ficar quente pra você. Espia só quem acaba de chegar.
- O Dálio...aquele...
- Aquele corno, corno não é minha filha?
- Foi, agora não tenho mais nada com ele.
- Vou te avisar: não inventa de botar chifre no Pedro Mato Longe. Não há de prestar.
-Fica tranquila, minha tia, a mamãe aqui sabe fazer a coisa certa. Vou dar um arroxo naquele escroto do Dálio. Ele tá me devendo.
- Não me diga!
- Tá. Claro que tá. Quero ouvir do tal do samba que ele fez pra Letícia do Leme.
- Nem perca seu tempo, aquilo não é samba.
- Não é mas ela ficou toda metida com a parada.
- Bobinha que ela é, eu não queria que fizessem uma merda daquelas em minha homenagem. Aquilo é uma sacanagem.
- A senhora conhece o samba?
- Claro, todo mundo aqui conhece.
- Então canta, canta pra mim.
- Deus me livre e guarde. Vou chamar o próprio, te esconde ali.
- Onde, tia?
- Atrás daquele isopor grande, mas não pega nenhuma, se pegar te entrego pro poeta. Ah ah ah. Péraí.
- Dalio, ô Dalio, chega aí.
- Diz minha tia, o que é que manda?
- Canta teu samba pra mim? Não consigo lembrar, canta.
- Mas assim, a seco?
- Entra filho da puta.
Tia Nenê abriu uma gelada, Dálio cantou, Maité ouviu. E riu, riu...
Desce minha deusa
escuta essa prece
esse pacato céu
não te merece
imariê imariá imariê imariô
Vem da senzala a minha dor
vem de Iemanjá a tua cor
Desce minha deusa
escuta esse prece
acende esse nosso amor
imariê imariá imariê imariô
Tua malícia ó flor do Leme
Mergulha no mar
o teu perfume
Desce Letícia
vem me buscar
imariê imariá imariê imariô
Escuta esse nego
que te oferece
uma cascata de versos sem fim
vem me amar
imariê imariá imariê imariô
Vem Letícia, vem, desce pra mim
ima ima imariê ê ê ô ô ô ô.
Maitê ria em dolby surround.
- Tá fazendo aí, nega?
- Estava me torturando, ouvindo essa merda que você fez, só podia ter saído dessa cabeça podre.
- Pô nega, não fala assim. Em nome dos nossos bons tempos.
- Que bons tempos, porra nenhuma. Chama aquilo de bons tempos, tu só ia no convencional.
- Convencional é? Convencional é ? E aquela vez que comprei aquele escorrega e botei na sala lá de casa. Lembra como tu descia, lembra? Peladinha, perna aberta e eu te esperando ali embaixo, lembra? Isso é convencional? E aquela vez da
correntinha da barriga, esqueceu?
- Correntinha da barriga?
- Pô nega, correntinha de ouro que te dei, tua cintura não é das mais delgadas, me saiu uma nota.
- Mas não lembro.
- E aquela vez com as botas da Madonna. Tive que fazer um ganho graúdo pra comprar as botas, mas valeu a pena. Você ficou bem mais alta que eu, essa você lembra. Subi no sofá, você virou esse bundão pra mim, chama isso de convencional. A gente gastou aquela tarde todinha só nessa onda.
- Mas doeu.
- Um pouquinho tinha que doer, não é nega! Afinal de contas o crioulo aqui é bem calçado, tu não pode negar. E agora você joga tudo isso no lixo, tudo por causa do Pedrão. Logo o Pedrão, caralho! Ele te deu uma correntinha, te deu as botas da Madonna, comprou um escorrega lá pra sala daquele barraco dele? Me diz. Garanto que nem sabe quem é Madonna.
Mas a melhor de todas, essa tenho certeza, você nunca vai esquecer.
- Qual?
- Aquele dia que você assistiu o jogo do Flamengo contra o Grêmio, a decisão do campeonato, lá em casa. Está lembrando?
- Não.
- Você viu todo o primeiro tempo sentada no meu colo, lembra agora? A torcida gritava, é o Pet, é o Pet, é o Pet, e você subia e descia, lembrou?
- Ai, nem me fala, gozei três vezes só no primeiro tempo.
- E a essas alturas a gente ainda nem era campeão. Disso você não esqueceu, viu? Por que jogar tudo isso no lixo, minha nega? E ainda teve a comemoração, lembra?
- É, mas aí você exagerou, que merda foi aquela de mostrar a cicatriz da operação da hérnia pra Raíssa?
- Ela pediu pra ver.
- Pediu pra ver, pediu pra ver e tu precisava mostrar?
- Curiosidade a gente tem que matar, nega. Isso é passado, minha preta, vamos esquecer.
- Preta é o cacete, jambo, desgraçado, a cor da mamãe aqui é jambo. Se não sabe aprende, porra. Estranho, agora há pouco você estava mergulhado no passado, de uma hora pra outra fala em esquecer o passado. Quem te entende, ô Idalino?
- Dálio, nega, Dálio.
Tia Nenê que a tudo ouvia enquanto coordenava a operação feijoada, sem largar o copo de cerveja, avisou.
- Olha aí macacada, a chapa vai esquentar, o presidente tá chegando.
- Sua benção, minha tia, esse feijão tá mandando um cheirinho pra toda comunidade, mas...mas o que temos aqui; Dálio Duas e Meia e Maitê Suspiro Meu. Fazendo o quê, tão mocozados aqui os pombinhos, não me diga? E a senhora minha tia, dando guarida a esses dois, minha tia? Não se pode confiar em mais ninguém nesse mundo. Nesse mundo eu sempre soube, mas aqui, na minha comunidade, sou apunhalado por trás no beco da minha madrinha. Tão de sacanagem comigo, tão?
- Não é nada disso, amor?
- Tenho pavor que me chame de amor, nega, tu sabes muito bem. Mas me conta, meu compositor, qual é a tua, tá querendo ganhar a nega, ganhar a nega do teu presidente, é?
- Não é bem assim, Pedro. Aconte...
- Mas como que não é bem assim, Dálio? Você tava me pedindo pra voltar, não tava tia Nenê?
- Sei de nada, sei de nada.
- Fala Dálio, tava ou não tava, negro covarde.
- Tava e não tava, não é Maitê?
- Minha tia, chega aí.
- Que é meu filho, vai me tirar das panelas, cacete?
- Me diz, minha madrinha, o que fazer com esses dois ratos?
- Esquece, meu filho, esquece.
Dálio não se conteve.
-Taí meu presidente, taí um samba, tá nascendo, quer ver? Puxa um banco, tia enche um copo pra esse pobre poeta. Nega, chega mais.
Esquece, meu amor, esquece ê ê ê ô
o que você não apalpa jamais cresce
esquece, meu amor, esquece
É ilusão, é ficção o que se vê
é ilusão no que se crê
esquece, meu amor, esquece ê ê ê ô
dizem por aí
que meu coração não te merece
liga não minha cabrocha
esquece, esquece, ê ê ê ô
O que não se apalpa jamais cresce
Nabucodonosor também teve seu dia
favelado, imperador
quem atira primeira pedra
pedra da hipocrisia
sacanearam o Nabuco
Agora, esquece, meu amor, esquece ê ê ê ô
Se te falam em traição
esquece, esquece
se te falam em dor de corno
esquece, esquece
o que você não apalpa jamais cresce
esquece, meu amor, esquecer ê ê ê ô.
- Caralho, minha madrinha, o poeta tava escondendo o samba. Tenho um negócio pra ti, Dálio. Coisa fina, o negócio da tua vida. Eu tava pensando em estourar teus cornos até agorinha há pouco. Coisa de minuto. Os teus e o dessa piranha,
mas te proponho um negócio.
- Fala aí presidente.
- Antes me explica um troço, não entendi essa parada do Nabucodonosor.
- Nada a ver, meu presidente. É só um torresminho da história, valeu? Mas qual é o negócio que tu ia mandar aí?
- Seguinte, tu me cede o samba e eu te deixo vivo. Vivo e com a nega.
- Porra, meu presidente. Meu samba, minha poesia, minha arte, meu presidente. Te dou parceria, valeu?
- No samba e na nega?
- No samba e na nega, tá fechado.
- Então já é.