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Para que ler, afinal?

Para que ler, afinal?

Geralmente, as crises existenciais afetam as almas menos dadas a praticidades e pragmatismos, e como bom libriano, estou sempre balançado pelos dois lados da questão, de maneira que crises não me faltam. Uma delas – tenham calma, não farei desta coluna (ainda) meu divã – vem sempre acompanhada da pergunta a que não posso recusar a dar respostas, mesmo que elas sempre sejam parciais e transitórias. A questão, pois, é a de saber: afinal, para que escrever? – questão que vem acompanhada de sua irmã gêmea, bem mais constante na boca das pessoas do que a primeira: para que ler, afinal?

Desde que me entendo por gente (que escreve), essa pergunta apavora minhas auroras, quando só um bom banho gelado, seguido de um café forte, fazem minha alma voltar ao corpo. E é mesmo diante de fantasmas que o exercício de elaborar respostas parece uma autodefesa contra a mediocridade de quem acredita não valer a pena uma vida dedicada ao interesse de ler, reler, escrever. Para que ler? As vozes persistem. E uma nova resposta precisa ser formulada. Ela sempre é parcial e transitória, mas preciso outra vez dizer a mim mesmo – para quê? Direi agora também a vocês, mas não tenho certeza se me ouvem. Difícil ter certezas na vida. Eu, por exemplo, vou tentar responder a esta crise com a única certeza de haver tomado um banho gelado, seguido de um café forte.

Antes de tudo, é preciso que vocês sintam o (só meu?) drama. Todo mundo, uma vez na vida ao menos, já se deparou com uma pessoa sem instrução, dona de um saber profundo e não raro transcendente, e com outra pessoa, rica de diplomas e leituras, mas de uma pobreza de trato e de vida muitas vezes absurda. Como defender a necessidade da leitura e da instrução diante de exemplares tão cotidianos como esses? Como mostrar que vale a pena uma vida dedicada ao interesse de ler, reler, escrever se não parece que vem junto a isso aquela bondade e compaixão que tanto prezamos na qualidade do humano? Já ouvi muito a deixa de quem denuncia nos letrados aquele ar de deboche e de enganação que quase se confunde com a imagem do político, de quem muito fala mas nada faz. Não parece o cúmulo da insatisfação jogar a vida fora para se aventurar numa atividade que nos afasta do mundo, das pessoas e da verdade?

Talvez eu seja, como Pessoa (digo o Fernando, meio avesso a ser uma só pessoa), um tanto dramático. Mas não no sentido de me derramar em lamentos por algum destino malfazejo, e sim no sentido de eu ser sempre vários, de pensar como se houvesse um café da tarde na minha cabeça, ou uma mesa de bar, em que se discute, sem papas na língua, os assuntos mais intragáveis. Se eu soubesse que vocês também sofrem com isso, eu poderia dizer, em favor da arte da leitura e escrita, que nós variamos através da literatura. Sou vários, e se chego a variar das ideias, não se pode dizer que seja algo de todo ruim em um mundo que pinta de rosa a opressão entre pessoas e o descaso com muitos que não têm qualquer garantia de chegar ao final do mês comendo bem todos os dias, quiçá comer alguma coisa. Se vario, é para não seguir o ritmo diário dessa vida desumana pintada em programas de TV, é para não me dizer ‘racional’ e ‘humano’ quando só estou interessado no meu pirão primeiro. Na literatura, eu me vario. E sendo assim, vários, conheço melhor aquele outro que parece tão diferente de mim, e conheço a mim mesmo naquilo que tenho de tão diferente dos outros.

Se soubesse que vocês sofrem do mesmo mal que eu, essa resposta já estaria boa. Mas sei que vocês têm mais o que sofrer, em vez de ficar dando trela para vozes na cabeça ou inventando personagens e heterônimos, e saber disso faz coro já em favor da literatura, porque é pela leitura e escrita que chego a respeitar o vário nas ocupações e preocupações, que chego mesmo a apreciá-lo. Afinal, mesmo se lemos um livro que descreve paisagens ou animais, somos sempre nós, pessoas, o foco da literatura. É a vida humana, em sua beleza e sua miséria, que nós só conseguimos admirar e respeitar pelos desdobramentos de si que a arte provoca. Isso não se aprende na escola ou na vida, não na proporção com que a leitura nos convida a viver mil vidas. E porque somos seres de linguagem, a arte literária, sendo a mais intensa experiência de linguagem, nos convida ao irresistível prazer de sermos nós mesmos com mais intensidade, com mais liberdade. Sem um mínimo mergulho nas letras, não é possível dizer com clareza o que somos, o que sentimos, o que padecemos, o que desejamos. A sabedoria simples dos iletrados pode soar profunda, mas ela não tem como saber disso se não for através da arte da palavra.

Há, portanto, um anseio cultural em fazer que o número de leitores aumente cada vez mais, como forma de proporcionar essa abertura para a condição de ser pessoa. Mas essa abertura acaba por nos incentivar também politicamente, pois a arte da palavra forma o tecido de implicações de ser cidadão, de viver em comunidade. Ela nos anima, por fim, ao sabor de saber que se pode aperfeiçoar a experiência ética e estética através da leitura. A vida humana, só recentemente (2600 anos nada são em termos históricos), conheceu a escrita como arte, e mesmo que as diversas culturas mostrassem conhecer o poder que as palavras possuem, é por meio da literatura que esse poder se intensifica, em parte por sua materialidade, em parte por sua capacidade de propagação, mas sobretudo porque é com o texto que nos sensibilizamos para o ritmo das repetições do dizer que nos constituem o pensamento, a razão, a comunicação, a cultura.

Não sei vocês, mas enquanto escrevo pude ouvir algumas vozes em mim de certo modo ainda insatisfeitas com essas pequenas pílulas de justificação de por que vale a pena afinal uma vida dedicada ao interesse de ler, reler, escrever. Ouço protestos vindos de um fulano sentado ali ao canto de mim, com seu chope erguido e uma voz tonitruante – nem todos querem ou podem ser escritores, diz a voz, para que perder tempo com esse texto que só lerá quem já perde tempo com isso? Tento, entre um gole e outro de café, mostrar que não se espera sejam todos escritores, como não se espera seja tecelão quem veste e investe em roupas e tecidos. Porque não ser tecelão não impede que saibamos usar roupas – e a metáfora tem sua importância aqui: sendo o próprio texto um tecido de significações, eu poderia tentar uma outra resposta, menos séria mas igualmente provocativa, para dizer, em favor da arte da literatura, que ler é não ser pego nu com a mão no bolso. Vestir-se do melhor das palavras é esconder a vergonha de perder tempo com tanta coisa inútil.

Mas se a pergunta do fulano ainda insistir, como um zunido na cabeça – para quê? – talvez nos reste apenas lamentar que o rei, nu sem saber, se orgulhe disso. Porque a bem da verdade, como toda habilidade que qualquer tecnologia exige, a escrita e a leitura só oferecem sua recompensa a quem insiste em exercitá-las. Só podemos, no máximo, fazer a nossa parte, que é provocar à leitura, e já estarei imensamente satisfeito se você, caro leitor, tiver me acompanhado até aqui, exorcizando comigo esses fantasmas, sem se recusar variar um pouco das ideias. Aliás, voltando ao Pessoa, que eu tinha evocado como cúmplice, devo dizer que nossas variações estão longe de ser desmembramentos do Eu, como eram os heterônimos do poeta português. Eu no máximo me reconheço mais a partir de minhas personagens, mas o grande Pessoa, sempre avesso a ser uma só pessoa, quase mesmo se perde em seu Eu mesmo, tanto que vive por heterônimos. Pode ser então, por isso mesmo, que tenhamos de aprender a resposta final ao nosso (ou só meu?) drama com o maior de todos os variantes, pela voz de uma de suas pessoas:

Sentir tudo de todas as maneiras,
viver tudo de todos os lados,
ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
realizar em si toda a humanidade de todos os momentos,
num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

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