As fronteiras idiomáticas: Caminhos da Antropologia e da Tradução
Neste artigo, procuro aproximar tradução e antropologia, esta ação tem como propósito uma breve análise a respeito da prática de traduzir em seu caminho costumeiro, de uma língua hegemônica para uma língua periférica, e outra prática, pouco usual, que não é simplesmente o avesso da anterior, traduzir de língua periférica para hegemônica. É incomum, acentua o exotismo no que ele tem de melhor, embora a intenção não seja tão somente essa; a tradução aqui aproveita e faz uma denúncia pois o trabalho apresenta uma língua em vias de extinção traduzida ao idioma francês. Vale destacar que as línguas indígenas no Brasil tendem a desaparecer embora a forte resistência de alguns povos. Esta resistência aliada ao trabalho de universidades e indígenas, que chegam aos cursos superiores, tentam preservar, e muitas vezes, ressuscitar algumas línguas. A Antropologia acende um olhar sobre a diversidade cultural, o que nos permite nos investigarmos, entendermos o que somos, para tanto fazemos uso do espelho que o “Outro” nos empresta. Antropologia e Tradução caminham juntas, nos concedem o equilíbrio sobre fronteiras de mundos sociais e culturais. Deste ponto, do marco do respeito e da aceitação das diferenças, estaremos aptos a fazer uso de nossas possibilidades de sentir, agir e refletir.
Je suis un traducteur qui, habituellement, est au service des langues hégémoniques oubliant parfois son principal rôle, celui de fixer les langues et de promouvoir la diversité culturelle. De façon générale, le traducteur établit un dialogue entre deux cultures. Ici, il s’agira d’une conversation triangulaire: la culture indigène, la culture brésilienne et la culture française. Je conçois la traduction dans ce cas spécifique comme un concept anthropologique qui, au-delà des questions linguistiques, sert de moyen pour établir un parallèle entre la traduction et la résistance. En ce sens que l’anthropologie implique, inévitablement, une rencontre avec l'autre (GEERTZ. 2009, p.27). Elle permet ainsi à ceux qui ne connaissent pas cette réalité, d’observer les marques de chaque langue, d’étendre la vision de chaque culture et de susciter un intérêt pour la perpétuation de la culture la plus fragile, et partant, des peuples d'origine.
Traduzo grandes escritores da língua francesa, mas traduzir Gargantua, de François Rabelais, e traduzir histórias dos povos indígenas, leva o leitor à reação óbvia, aquela que, num primeiro momento, não vê razão ou semelhanças nesta tarefa. Num olhar mais demorado, no entanto, perceberá algumas similitudes.
Un fait surtout interesse notre propos: le mythe du bon sauvage est la création d’un souvenir. Est-il d’origine judéo-chrétienne ou se rattache-t-il à des réminiscences classiques? il import peu. Ce qui compte, c’est que la Renaissance comme le Moyen Age et comme l’Antiquité on souvenance d’un temps mythique où l’homme était bon, parfait et heureux. (ELIADE,2013 p.44)
Rabelais escreveu Gargantua em 1534, com as particularidades da língua francesa da época e neologismos que ele mesmo criou, por sua vez povos indígenas brasileiros, que não têm a prática de escrever suas histórias embora muitos líderes entendam a necessidade como forma de preservação da língua e da cultura, há pouco passaram a aceitar a escrita dessas histórias em sua própria língua. Caberá ao tradutor a apresentação de tais histórias na língua francesa. Mas em Rabelais, a língua da época se adequa perfeitamente à língua francesa atual? Estaria apta a ser traduzida à língua portuguesa? Por sua vez, como traduzir uma história indígena diretamente ao idioma francês?
Uma das grandes dificuldades do tradutor consiste em que se passa algo que foi escrito numa língua, ligado às características de uma cultura, para outra língua de características bem diferentes.(SCHNEIDERMAN,2015. P.50)
No primeiro caso, o tradutor buscará familiarizar o leitor com as estranhezas da língua francesa nos anos 1500, já no que diz respeito aos povos indígenas, embora a manutenção da estranheza, sobretudo semântica, o tradutor primeiramente as traduzirá ao idioma português. O que não implica de modo algum uma tradução indireta. E ao dizer que o “tradutor buscará familiarizar o leitor”, de modo algum pretenderá com isso operar uma descaracterização da língua, não tentará desprovê-la de seu sentido político, tampouco torná-la mais acessível. A literatura indígena, visto se tratar de uma literatura bastante peculiar, completamente avessa ao que convencionamos chamar de “alta literatura”, o exotismo, a estranheza se farão notar sempre. Ao proceder desta forma o tradutor não pretende aniquilar as línguas autóctones, muito ao contrário, busca uma visualização maior dessas línguas e culturas. Vale enfatizar que o tradutor se encontra frente a duas línguas, uma que seguiu seu curso natural, evoluiu, transformou-se, vive; outra encontra-se em vias de extinção, no limiar do desaparecimento, fruto do extermínio de povos autóctones patrocinado pela indiferença do governo brasileiro. Vários governos, vale dizer, todos desconhecedores do imenso valor que representa a diversidade cultural.
Importante enfatizar a peculiaridade do diálogo entre línguas tão díspares. Traduzir diretamente de uma língua indígena para o idioma francês, bem como realizar igual tarefa ao traduzir a língua francesa dos anos 1500 para a língua portuguesa de nossos dias, pareceria por demais artificial. Entendo que para a realização de tamanha empresa se faça necessário a presença de mediador. No caso, uma mediadora, a língua portuguesa encarregada da transição da língua original à língua francesa, e esta ao familiarizar o leitor com as peculiaridades do idioma francês da época, antes de traduzi-lo à língua portuguesa. Entendo que esta mediação seja inevitável, principalmente no intuito de conceder credibilidade à tradução.
En d’autres temps, les hommes avaient besoin des Anciens d’um point de vue pragmatique.Il ler fallait apprendre d’eux beaucoup de choses, immédiatement applicables. On comprend que la traduction ait alors au présent.Mais aujourd’hui, c’est le contraire que nous importe. Nous avons besoin d’eux précisément dans la mesure où ils nous sont étrangers, et la traduction doit souligner leur caractere exotique et distant, le rendant intelligible come tel. (0RTEGA Y GASSET,2013.P.69)
A língua indígena não é a minha língua, minha língua é a língua portuguesa. E aqui nos deparamos com dois povos, que dividem o mesmo território, falam línguas diferentes e não compartilham a mesma realidade extralinguística pois as realidades guardam grandes diferenças entre elas. Pero Vaz de Caminha, em cartas enviadas a Portugal (1500), informa como ocorria a comunicação entre os índios e os portugueses; quando estes queriam falar com os nativos, usavam, no geral, a mímica. No entanto, à medida em que ocorria a familiarização com o tupi, passaram a usar esta língua, e aqueles que possuíam o conhecimento do dialeto eram tidos como tradutores, e ficaram conhecidos pelos indígenas como “línguas” ou “senhores da fala”.
Ao traduzir histórias indígenas nos deparamos com etnias e o narrador/tradutor torna-se um etnógrafo ao defrontar-se com um tempo mítico que é atualizado no presente e por isso mítico.
Se o mito é tradução, é porque ele não é, sobretudo, representação, pois uma tradução não é uma representação, mas uma transformação. (VIVEIRO DE CASTRO, 2015. p.244)
A primeira transformação ocorre em olhar para a obra a ser traduzida e percebê-la como a história da formação de um povo.
Precisamos aproveitar a oportunidade/possibilidade de pensar, imaginar diferente. São mudanças, transformações e a atualização do tempo mítico presente. Trata-se de uma política linguística, quero crer, traçar ligações onde existem mas não costumamos procurar. A política linguística deve ser o ato de criar possibilidades de ligações inúmeras....
Como falar de política linguística para as línguas indígenas modernas tendo a tradução como ferramenta? Falar de tradução, por exemplo, de Asterix para línguas indígenas é uma política linguística tão forte quanto a própria tradução. Asterix correria o risco de tornar-se ainda mais resistente, mais lutador.
Um exemplo: Digamos que Asterix e Obelix, personagens de histórias em quadrinho francesa, sejam indígenas. Quantas possíveis traduções poderíamos fazer? Ao utilizarmos Asterix para falar de línguas indígenas modernas estamos num processo de tradução. Num primeiro momento encontraremos estranheza, desconforto, mas do desconforto vem o conforto.
Asterix vive nos anos 50 a. C, nessa época a Gália foi ocupada pelos romanos, mas uma aldeia, uma apenas, resiste. Uma poção mágica protege os habitantes. A resistência de Asterix é similar a resistência dos povos indígenas brasileiros, suas lutas em nome da preservação das línguas, dos costumes, da identidade que não pode ser aviltada pelo invasor/colonizador. A poção mágica de Asterix e os mitos para os indígenas são evidências a comprovar a necessidade da fantasia no território da resistência. Nessa luta a presença do mito se impõem. Importante ressaltar que a resistência de Asterix ocorre no âmbito da ficção e a dos povos indígenas inserida numa violenta e triste realidade. Realidade esta que além de não aceitar o exótico, o diferente, o estranho; não o respeita.
As histórias dos povos autóctones estão centradas nos mitos, e esta característica não me permite sustentar o adágio traduttore, tradittore.
Todo mito é por natureza uma tradução[...]. Todo mito é ao mesmo tempo primitivo em relação a si mesmo e derivado em relação a outros mitos; ele se situa não dentro de uma língua e dentro de uma cultura ou subcultura, mas no porto de articulação destas com outras línguas e outras culturas. O mito não é jamais de sua própria língua, ele é uma perspectiva sobre uma língua outra. (Lévi-Strauss, 1971.p.576-77)
Se ao traduzir Rabelais o tradutor colabora com a sedimentação de língua e cultura francesa, ao realizar igual tarefa a partir das línguas indígenas, este profissional foge ao comportamento quase que obrigatório da profissão e coloca em igual nível de interesse língua hegemônica e língua à beira da extinção.
Ce n’est que lorsque nous arrachons le lecteur à ses habitudes langagières pour l’obliger à évoluer dans celles de l’auteur qu’il y a véritablement traduction.Jusqu’à présent, on n’a quasiment produit que des pseudo-traduction (ORTEGA Y GASSET,2013.P.61)
E o papel da antropologia, do antropólogo? Estamos tratando de uma ciência que se ocupa em estudar costumes, crenças, hábitos e aspectos extremamente sutis dos mais diversos povos que vivem em nosso planeta, nada surpreende o interesse em demonstrar a diversidade cultural de alguns desses povos. A antropologia tem como objeto o homem, o ser biológico, o social e o cultural. Secciona-o para, aparentemente, melhor estudá-lo. Aqui neste trabalho, onde a Antropologia Cultural, terá prioridade como suporte à análise do trabalho do tradutor; vez que outra perceberemos resquícios da Antropologia Social, assim como da Física e Biológica. Vale enfatizar que o centro deste estudo é o papel do tradutor enquanto fixador de línguas e promotor da diversidade cultural.
Esta pesquisa está baseada na observação de povos indígenas, acrescentado o estudo de seus mitos e literatura, bem como livros acerca da “ época de Rabelais.”
Não é tarefa das mais fáceis traduzir a obra de Rabelais, no entanto a tradução de histórias indígenas, sem dúvida, parece ainda mais trabalhosa. Seria possível traduzir ou estariam tais línguas fadadas e resumirem-se a si próprias?
A ideia mais profunda de Deleuze é talvez esta: que a diferença é também comunicação e contágio entre heterogêneos; que em outras palavras, uma divergência não surge jamais sem contaminação recíproca dos pontos de vista. Conectar é sempre fazer comunicar os dois extremos de uma distância, mediante a própria heterogeneidade dos termos.(ZOURABICHVILI,2004.p.99)
Nos últimos 500 anos as línguas indígenas diminuíram de 1200 para 180 no Brasil. Não estimamos o valor real da perda, as línguas estão em permanente e extrema movimentação, para fixá-las se faz necessária a escrita. Recentemente os povos indígenas aceitaram esse registro, e passamos a contar com o registro dessa literatura autóctone, da qual apresentarei alguns exemplos, sempre lembrando que a tradução de literatura é uma atividade intrinsicamente criativa. Como tradutor pretendo colaborar para a fixação de algumas dessas línguas, traduzi-las para a língua francesa é minha modesta contribuição. E repito: je ne suis donc pas d’accord avec la fameuse paronomase Traduttore, Traditore, car mon travail ne vise pas à trahir la littérature indigène. J’'ai essayé d'être aussi fidèle que possible, de la même façon dont je me comporte à traduire, entre autres, Rabelais et Flaubert, j’alimente une extrême vigilance dans le sens de ne jamais trahir les auteurs que je traduis. Quero apresentar esses autores conforme os leio e não como prova de uma traição.