Aos olhos de Capitu
Quando indagada sobre sua condição de escritora, Virginia Woolf asseverou: "it is fatal for anyone who writes to think of their sex" [é fatal para qualquer um que escreve pensar em seu sexo]. O ‘fatal’ aqui aparece, à primeira vista, e pelo enunciado destacado assim de seu contexto, com o sentido de inevitável, para afirmar algo como necessário de acontecer, como algo inescapável. O ‘fatal’ de Woolf é, contudo, de outra ordem, e apenas as duas frases seguintes nos permitem compreendê-lo: "it is fatal to be a man or woman pure and simple; one must be woman-manly or man-womanly" [é fatal ser um homem ou uma mulher pura e simplesmente: é preciso ser, antes, uma mulher-viril ou um homem-feminil]. Apesar da estranheza que os conceitos de woman-manly e man-womanly podem provocar a ouvidos atuais, a referência parece clara: é preciso, a quem escreve, entender-se desde a complementariedade dos sexos, porque se fechar no seu próprio, ao escrever, é fatal – é a morte da literatura, da arte enquanto criadora de experimentações. A autora de Orlando nos faz ver, portanto, que a escrita puramente feminina ou masculina está fadada a perecer, com a ameaça de levar junto muita gente boa para longe da arte.
Isso porque a necessidade de ter e dar voz a quem sempre esteve excluído de dizer parece provocar, como efeito às vezes nem tão sutil, a censura de temas e de leituras que não realizem o esperado da emancipação. O caso recente ocorrido com as críticas ao livro Tudo é rio, em que se avolumaram pesares e insatisfações com o tratamento dado pela autora a uma situação de violência contra a mulher, parecem no fundo exigir que Carla Madeira, por ser escritora, produzisse uma literatura que pusesse em questão a violência, em vez de ratificá-la sob o viés do perdão. Embora haja no livro, sem dúvidas, uma clara estereotipia da figura da puta em sua personagem Lucy, algo até certo ponto aceitável em obra de estreia, exigir que seu romance seja um manifesto é não entender de que modo a experiência estética é e deve ser vivenciada. Aqui e ali ainda sentimos os efeitos negativos da famosa literatura engajada defendida por Sartre, então transformada em lugar de fala dos que pretendem assumir compromissos políticos a despeito da própria arte.
A preocupação literária de Virgínia não esconde ou rebaixa sua denúncia contra a situação política e econômica das mulheres de seu tempo, antes a reforça – afinal, como esperar qualidade estética de uma escrita limitada cultural e economicamente? Mas ser a favor de uma maior igualdade de condições é lutar, no fim das contas, por uma inclusão de perspectivas, em vez de patrocinar exclusão sob o pretexto da representatividade. Essa ânsia de excluir pouco surpreende os leitores do mestre de Assis – não digo o santo, mas o literato (embora Francisco precisasse ser também mais imitado por aqui). O brasileiro se percebe, falo dos que leram as obras da maturidade de Machado, enormemente afetado e presunçoso, capaz de desmerecer alguém pelo tipo de roupa que veste. Aliás, deixar-se levar pelas aparências é uma experiência estética muito bem produzida pelo autor de Dom Casmurro. Capitu que o diga – a mais célebre das personagens brasileiras expôs-se sobre o palco das controvérsias como cobaia de um experimento machadiano com nossa miopia moral. Eu devia alguma explicação sobre a inspiração dessa coluna, e as comemorações do mês da mulher e a questão do sexismo em literatura talvez sejam só o pretexto esperado para pensarmos um pouco sobre o desafio Capitu.
Creio que observar a cena e a sina de Capitolina seja um dos melhores caminhos para falar sobre o desafio da leitura. Saber ler é uma técnica, mais importante até que a da escrita, pois como bem comentou Lulih Rojanski em sua coluna aqui na O Zezeu, não se é escritor sem ter sido antes um bom leitor. Machado de Assis era ambos, e há muito a aprendermos acompanhando sua poética. O caso de Dom Casmurro é emblemático para nos ensinar algo da arte da boa leitura. O famoso dilema de condenar ou não Capitu por traição, por exemplo, é produto exatamente de um erro de leitura. Isso porque estamos sempre a observá-la sob o olhar de Bentinho, e o foco narrativo aqui diz tudo sobre o que se pode saber sobre a personagem. Nenhum tribunal aceitaria condenar alguém sem ouvir as duas partes, uma mãe sensata procuraria ouvir a versão da criança que bateu em seu filho, mas em se tratando de uma figura tão dissimulada como era Capitu, por que não? Deveras afiado na ironia reveladora de nossas contradições, Machado pregou uma peça e muita gente caiu – talvez por desconhecerem aquela outra peça da qual Dom Casmurro se faz uma releitura e, por isso mesmo, uma homenagem.
Em Otelo o mouro de Veneza, o também genial escritor e leitor Shakespeare cria uma peça para lidar não com a traição, mas com o ciúme. A grande personagem ali é Iago que, sabendo manejar a paixão enlouquecida de Otelo, leva-o a acreditar na traição de sua mulher Desdêmona. O manejo cuidadoso que o bardo inglês nos leva a acompanhar para tornar as suspeitas mais imprecisas em evidência e prova segue de perto o tipo de leitura da situação que Iago produz em Otelo. Talvez seja necessário repetir: falo de uma leitura a que Iago conduz Otelo, a partir de detalhes transmutados na alucinação de que o ciúme é capaz. E como Machado relê a peça? Ele constrói sua narrativa sobre o casal Bentinho e Capitu adotando como “Iago” (quer dizer, como a personagem que produz um efeito de leitura) o próprio Bento Santiago envelhecido. Através dos olhos de um narrador casmurro, velho e amargurado, a decisão tomada no passado, daquela separação em função de uma suspeita de traição entre Capitu e Escobar, pretende se justificar – mas para quem? Aí está o pulo do gato, o detalhe laborioso que torna um bom leitor em um escritor genial: Machado pretende que Bentinho se justifique diante de nós, seus leitores!
Até que ponto, então, não fomos seduzidos por Iago, a acreditar que a desenvoltura dos gestos e dos afetos de Capitu significariam sua perversão? Machado de Assis provoca em nós o mesmo efeito de que na peça de Shakespeare Iago foi capaz, transformando o próprio ato de ler em personagem da sua trama. A peça que ele nos prega é, com isso, a melhor forma de homenagear um mestre. Faríamos bem em homenageá-los se com eles aprendêssemos a ler melhor – ler, sobretudo, nós mesmos, nesse espelho literário que nos revela as duas almas que herdamos. Essa talvez seja a única maneira de neutralizar uma inclinação quase irresistível de nos deixarmos levar pelas aparências. E para tanto, seria preciso começarmos a nos perguntar – quem somos nós sem o olhar do outro? Capitu, por certo, não estaria sob suspeita, não fosse a amargura ciumenta do narrador que lê os indícios como provas. A quem sabe ler, com Machado, questionar se Capitu traiu ou não revela apenas uma condição de cobaia no experimento machadiano para denunciar nossa hipocrisia.
O fato mesmo de serem, Shakespeare e Machado de Assis, dois escritores a porem sob suspeita o viés tendencioso de certos juízos contra a mulher em sua época mostra-nos aquela liberdade e abertura para a experiência literária sobre a qual Virgínia comentava. Porque a literatura é mesmo esse terreno em que se nos é exigido um esforço, mínimo e progressivo, de nos colocarmos no lugar do outro. Escrever pensando exclusivamente no seu sexo é tão fatal quanto ler fazendo o mesmo – ainda pior neste caso, porque reduz enormemente a riqueza dos livros e das letras. Se fiquei de me explicar por que adotei como título desta coluna uma expressão tendenciosa do narrador sobre Capitu (olhos de ressaca, inspirada na expressão que José Dias dera deles, “olhos de cigana, obliqua e dissimulada”), aqui, agora, pareço poder me justificar mais apropriadamente: são, querida leitora, a maneira pela qual soube de Capitu (eu, você, todos nós), e ao saber dela, soube de mim, que confiei, a princípio, nas suspeitas de Bentinho e depois, olhando melhor, pude duvidar de sua narrativa e, com isso, duvidar de mim mesmo. A expressão, vai lá, é um belo resumo da arte da leitura a que nosso mestre trabalhou incansavelmente para nos seduzir. Se hoje consigo me ver melhor aos olhos de Capitu, esta coluna me sirva de testemunho – e de homenagem.